Opinião

Empurrar uma pedra pela montanha acima

Empurrar uma pedra pela montanha acima

Mariana Vilas Boas

Investigadora na Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

Não é para retirar direitos a homens e pais que se atribui credibilidade a potenciais vítimas de violência doméstica e se assegura a sua proteção. O conhecimento sobre esta violência, seus riscos e impacto intergeracional, e as obrigações internacionais dos Estados, assim o impõem

No seu acórdão de 15 de janeiro de 2025, o Supremo Tribunal de Justiça revogou as medidas de coação impostas a um arguido fortemente indiciado pelo crime de violência doméstica. Em que contexto?

Vejamos: o Tribunal de Instrução Criminal entendeu ser suficiente que o arguido ficasse sujeito à menos gravosa das medidas de coação – o termo de identidade e residência. Isto porque, dos factos relatados, nomeadamente, pela ex-mulher do arguido, julgou estarem somente “indiciados” os mais relevantes para a aferição da existência de um crime de violência doméstica (e não “fortemente indiciados”, grau de convicção que se exige para que a imposição, designadamente da proibição de contactos, seja possível).

Que factos são estes? O arguido, agente da autoridade, movido por constante desconfiança, terá mexido no telemóvel da ex-mulher, tê-la-á perseguido, aparecendo nos locais em que se encontrava, enviado mensagens às suas entidades empregadoras, denegrindo a sua imagem; no âmbito da guarda partilhada da filha do casal, nascida em 2018, e através desta, ameaçado, destratado e manipulado a ex-cônjuge; na presença da filha, terá apelidado de “miserável”, “entre outros impropérios”, a ex-mulher, sempre que não estava de acordo com o que pretendia e, finalmente, tê-la-á empurrado quando ela tinha a criança ao colo.

Recorrendo o Ministério Público para o Tribunal da Relação, este tribunal de recurso entendeu que os factos se encontravam “fortemente indiciados”, valorando a componente intimidatória, silenciosa e íntima desta violência para justificar o caráter vago das declaração da alegada vítima, os relatos de outras testemunhas, assim como a circunstância de o arguido se limitar a negar os factos ou a explicar o conhecimento do paradeiro da ex-mulher e as aparições nos locais em que aquela se encontrava, não por usar “escutas eletrónicas” mas porque “pessoas amigas ou colegas de trabalho (…) lhe indicavam onde e com quem se encontrava”. Nesta sequência aplicou as medidas coativas de proibição de contactar, por qualquer meio com a assistente (ex-mulher), ou por interposta pessoa, mesmo em questões relacionadas com a filha de ambos e a proibição de se aproximar da assistente, da sua residência e do seu local de trabalho, medidas estas sujeitas a vigilância eletrónica.

Perante o recurso do arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, este tribunal, sobre os descritos atos persecutórios, refere que não se estranha que o arguido, desconfiando da relação extraconjugal da então mulher, “procure saber se assim é”, salientando que “este relacionamento extraconjugal deveria ser assumido nos factos e não o é”: “se a indiciada vítima deu causa à busca do arguido sobre o cumprimento ou não desses deveres, como parece ter ocorrido, não vislumbramos aqui qualquer ofensa àquela”. Ora, esta afirmação, a quem atente nestas matérias, poderá já ter feito soar um sinal de alarme. Será que se crê que uma eventual relação extraconjugal justificaria a perseguição, os impropérios e a transmissão de mensagens ameaçadoras por intermédio da filha de tenra idade?

Por outro lado, o Supremo Tribunal refere tentativas de manipulação da regulação das responsabilidades parentais, com uso da filha, por ambas as partes. Ora, dos factos indiciados ou fortemente indiciados pelos dois tribunais que antecederam o Supremo na apreciação do caso, apenas resulta o “uso” da criança, particularmente retorcido, pelo arguido.

De todo modo, e não cabendo ao Supremo Tribunal a apreciação dos factos, este pronuncia-se no sentido de o caso, tal como até então delineado, não configurar uma situação de violência doméstica, revogando as medidas de coação.

Se as necessidades de prevenir revitimação já são prementes quando esteja em causa “apenas” uma vítima adulta, nas situações que envolvem crianças que presenciam e ouvem um progenitor destratar outro, que são acordadas a meio do sono pelo progenitor que toca à campainha repetidamente, que são convencidas da futura morte prematura da mãe por informação do pai ou incentivadas a comportamentos violentos ou humilhantes para consigo próprias e com a mãe, pelo pai, aquelas necessidades são inarredáveis.

Não é em nome de uma conjeturada “vendetta” para retirar direitos a homens e pais que se atribui credibilidade a quem relata com verosimilhança ser vítima de violência doméstica e se assegura a sua proteção. A necessidade de o fazer advém de conhecimento científico desenvolvido ao longo de décadas sobre os contornos desta violência, seus riscos e seu impacto, que se prolonga por gerações, e das obrigações internacionais assumidas pelos Estados nesse sentido.

Dos factos apreciados consta que o arguido terá proferido afirmações no sentido de o seu emprego acarretar impunidade, por ter “as costas quentes” e “nada lhe acontecer”. O Supremo Tribunal não vê a relevância dessa menção e não lhe atribui credibilidade porque “já se transformou em lugar-comum, sendo recorrentes estas afirmações acusando os agentes da ... das mesmas”. Irónica e infelizmente, esta decisão parece ter vindo fortalecer as eventuais convicções do arguido.

A pedra vai sendo empurrada pela montanha acima, e tanto sobe, como cai: a solução só pode passar por continuar a empurrar.

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