Esta semana o humor nacional senta-se no banco dos réus.
Não é apenas a Joana Marques.
Mas ao menos que fosse por algo que permitisse fazer definitivamente triunfar a liberdade expressão sobre o que é a mera sensação de ofensa, mas que alguns anjinhos – ou virgens ofendidas – tentam confundir como sendo um direito de natureza e valor equivalente àquela liberdade fundamental. É que, ao contrário dos já incontáveis episódios diários do Extremamente Desagradável, neste caso, não se poderá afirmar que a liberdade criativa e de expressão da humorista tenha sido especialmente exercida e, muito menos, com sucesso.
A publicação feita no Instagram, que motivou os autores ao milionário pedido de indemnização, bastou-se na feitura de uma montagem de vídeos, com recortes da expressão de incredulidade – com apontamentos de sofrimento – dos jurados do Ídolos e a interpretação que dois cantores fizeram d’A Portuguesa. Montagem que é rematada com a expressão, livre e criativamente tirada de contexto, de um daqueles jurados, sugerindo que aqueles intérpretes do hino nacional o assassinaram, nessa interpretação.
Joana Marques acompanhou a publicação – feita a 25 de abril de 2022 – com a interrogação “Será que foi para isto que se fez o 25 de Abril?”. E foi isto e apenas isto.
Alguns ter-se-ão rido com a publicação. Foi o meu caso e provavelmente o de outros. Para isso nem seria necessária a publicação: bastava a visualização daquela atuação. Tantos, menos, ou mesmo mais do que os primeiros, também poderão não ter achado piada à mesma. E está tudo bem. O que nunca passou, com certeza, na cabeça de nenhuma dessas pessoas, foi pedir uma indemnização àqueles cantores pelo que fizeram a um dos mais relevantes símbolos nacionais – o que, só por si, aumenta numa dezena de milhões os potenciais “lesados”.
E porquê? Do mesmo modo que aqueles intérpretes do hino nacional tiveram – e ainda bem – toda a liberdade criativa para o interpretarem do modo que o fizeram, qualquer outra pessoa tem o direito de expressar, e mesmo de gozar, com essa interpretação. E é também por isso que Joana Marques nem sequer foi particularmente bem-sucedida na sua publicação, já que pouco ou nada exerceu do seu direito de se exprimir, gozando, quanto àquela interpretação. Tomara que tivesse feito mais. E, mais ainda, que aqueles cantores tivessem extravasado e ampliado em dose maior a sua liberdade de expressão criativa. Talvez assim tivessem provocado sátira maior e, assim, acentuado o riso.
Mas pedir uma indemnização pelo “assassinato” perpetrado contra o hino nacional seria, sempre, um absurdo. Tão absurdo como é aquele pedido de indemnização contra Joana Marques. Seria, como é o pedido feito contra a humorista, um ataque a uma ideia mais ampla – legal e constitucionalmente sustentada e, esperemos, ainda enraizada – de liberdade.
Essa ideia permitiu-lhes cantar como cantaram. Uns foram livres de ouvir e gostar. Outros foram livres de não gostar. Tantos foram livres para gozar. Muitos foram livres de se ofender. E a liberdade de todos não impediu a liberdade de nenhum. Todos foram livres para ser ou para fazer, sem interferir no espaço de liberdade de outro. Num Estado de Direito é isso que representa ser livre.
Querer julgar Joana Marques e a liberdade de exercício de fazer humor é querer julgar o ofício daqueles que escolheram ganhar a vida a provocar o riso de outros, num exercício que tem tanto de altruísta como de egoísta, no prazer que os próprios retiram ao provocar riso a terceiros. E nos tempos especialmente tenebrosos que o mundo e o país enfrentam, julgar o humor é aliar à aberração jurídica dessa ação judicial um propósito de riscar – e a lápis azul – o riso da realidade.
É graças a Joana Marques e a (felizmente) muitos outros humoristas que no meio das maiores ou menores agruras da vida e do mundo que nos rodeia nos vamos conseguindo rir.
Da minha parte: um enorme obrigado, Joana, Ricardo, Bruno, Frederico, Salvador, Guilherme e todos, todos, todos.