Mais uma vez na bruma dos dias do Médio Oriente – a guerra. Estas guerras eternas, que ressoam ciclicamente nas campanhas eleitorais norte-americanas e que Donald Trump prometeu, em tom messiânico, pôr fim de uma vez por todas, continuam por cumprir. A região tornou-se um campo de projeção e de exceção, o que Giorgio Agamben designaria como um “estado de exceção permanente”, onde a norma e a anomia se confundem, e onde a exceção se torna regra. Na esteira do seu pensamento, é possível perguntar: o que significa governar ou interpretar uma região a partir da suspensão contínua da sua própria normalidade?
O confronto que agora envolve o Irão, exige, por isso, que se vá além das narrativas estabilizadoras, sejam elas de civilização, de um conflito eterno per se, ou de modernização inevitável, e que se reconheça a região como um espaço de disputa simbólica, onde o poder se exerce tanto pela força como pela produção de sentido.
Nesta conjuntura, embora ninguém deseje um conflito regional, os receios de escalada são partilhados por diversos atores. Um comunicado conjunto, divulgado na segunda-feira pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de 21 países árabes e islâmicos, condenou a agressão militar israelita contra o Irão. Aliás, logo nas primeiras horas após o ataque, as monarquias do Golfo condenaram a ação e alertaram para o risco de bloqueio do Estreito de Ormuz, o que poderia comprometer as exportações petrolíferas. Por outro lado, tanto a China, que se expressou de forma mais assertiva do que é habitual, sem, contudo, abdicar da sua postura estratégica disciplinada e mantendo-se atenta face às armadilhas de qualquer intervenção, como a Rússia, manifestaram a sua preocupação e apelaram à contenção e ao restabelecimento da paz.
Os Estados Unidos, embora prestando um apoio contingente e estratégico a Israel, mantêm-se atentos à escalada, mas conscientes dos riscos políticos e financeiros que uma intervenção direta poderia implicar. Poderá este envolvimento aprofundar-se? É pouco provável que Washington opte por uma participação direta nesta cruzada, estando mais interessado em conter as tensões, apoiar Israel com armamento e, eventualmente, relançar o diálogo em torno do acordo nuclear com o Irão.
Este interlúdio bélico, ou seja, uma irrupção de violência num cenário até então contido, poderá redefinir ainda mais os equilíbrios da região. Surge, a posteriori, como uma estratégia de dissuasão no pós-7 de Outubro, respondendo a uma crescente pressão social interna em Israel para prevenir futuras surpresas. A morte de líderes como Hassan Nasrallah (Hezbollah), a erosão da presença iraniana na Síria e o progressivo isolamento de Bashar al-Assad são apresentados como vitórias tácticas que, no discurso dominante, servem para legitimar a ofensiva atualmente em curso.
Neste sentido, trata-se de uma gestão estratégica da escalada, que procura demonstrar força sem, contudo, desencadear um conflito total imediato. Verifica-se uma contenção seletiva, com a limitação de vítimas civis iranianas, e, em simultâneo, uma provocação deliberada, materializada no assassinato de altos responsáveis militares iranianos. As motivações políticas por detrás desta ofensiva não parecem visar, de forma explícita, uma mudança de regime em Teerão, mas antes o colapso do Estado iraniano, com o objetivo de enfraquecer a sua projeção regional e neutralizar a sua capacidade de ação. A par desta estratégia, sobressai também a construção de um legado histórico e de uma imagem de força por parte de Benjamin Netanyahu, cujo futuro político permanece incerto.
Indiretamente, a ofensiva israelita produz um efeito colateral, ou, talvez, intencional, de desviar a atenção da grave crise humanitária em Gaza. Neste novo enquadramento, o debate internacional em torno do reconhecimento do Estado palestiniano, as acusações de genocídio e a condenação das ações israelitas tornam-se politicamente mais difíceis de sustentar no decurso de um conflito direto com o Irão.
Num contexto em que se diluem as fronteiras entre guerra e paz, legitimidade e exceção, identidade e dissimulação, cada ator projeta a narrativa que mais lhe convém – uma fabulação estratégica concebida para reordenar o caos a seu favor. A região reconfigura-se, assim, como um palimpsesto discursivo onde as “verdades” são provisórias e moldadas por interesses mutáveis.
Neste cenário instável, poderá Trump regressar às conversações que estavam agendadas para o passado domingo em Mascate e alcançar um novo acordo nuclear? Improvável não é, mas dificilmente previsível. A escalada atual aponta para um confronto potencialmente devastador, uma espiral de aniquilação que, nenhum dos lados parece desejar, por enquanto.
Quanto à mudança de regime em Teerão, tudo indica tratar-se mais de um desiderato retórico. A sociedade iraniana continua a ser uma das mais paradoxais e difíceis de decifrar; e embora, aqui e ali, surjam vozes que aspiram à mudança, falta-lhes, como tantas vezes, a estrutura coesa para transformar a frustração em ação política organizada. A preocupação dominante reside, para já, na potencial degradação do Estado, cujo colapso poderia comprometer a coesão interna. Ainda assim, a hipótese de uma transição não deve ser descartada. Se e quando tal se colocar, caberá aos próprios iranianos, os únicos verdadeiros conhecedores do seu jardim, definir os contornos de um novo sistema de governação.
No fim, talvez regressemos, como dizia Wallace Stevens, “ao lusco-fusco da conferência, contentes por o irracional ser racional”. Ou, pelo menos, por assim parecer.