O Serviço Nacional de Saúde (SNS), pedra angular da conquista civilizacional do Portugal democrático e livre, e espelho maior do nosso contrato social, encontra-se numa encruzilhada que, mais que meros ajustes, exige uma refundação corajosa, com soluções integradas e perenes. O SNS deve ser o garante do direito fundamental à saúde para todos os portugueses, independentemente da sua condição social - que não pode ditar o acesso -, da geografia - que não pode ser factor de exclusão - , ou da condição económica - que não pode ser sentença.
A miragem adiada da capilaridade integral por equipas de saúde familiar não é tão-somente uma questão de escassez de recursos, mas uma falha na arquitectura do sistema com descompasso no planeamento. Para que a universalidade deixe de ser promessa, há que assumir incentivos efectivos para fixar os profissionais nos territórios mais carenciados, incluindo parcerias estratégicas com as autarquias nas áreas da habitação e educação, subsidiação da formação contínua, com mecanismos de discriminação positiva que suavizem a transição geográfica e compensem a “penosidade”.
Perante a expansão e perpetuação de listas de espera para consultas e cirurgias, não basta o simples acrescento de capacidade instalada, é necessária a revisão profunda dos critérios das referenciações, sendo que um número significativo daquelas poderá ser evitado com protocolos clínicos mais robustos e um investimento sério na capacitação dos cuidados primários.
A suborçamentação crónica que atrofia o SNS, aliada a uma gestão orçamental rígida, tantas vezes desfasada das reais necessidades, compromete a renovação das infra-estruturas, limita a actualização tecnológica e trava a valorização dos profissionais. A robustez orçamental, para além do incremento financeiro, estará dependente da reformulação do modelo de financiamento, com transição do paradigma que paga pelo volume de actos praticados, para o arquétipo centrado no valor entregue em saúde, com foco nos resultados clínicos e ajustamento ao risco e complexidade, afirmando a governação clínica sobre a hegemónica gestão administrativa, contrariando a pressão para atingir acriticamente metas quantitativas, num frenesim de “produção” onde decisões que engordam o número de actos, não têm necessariamente impacto real na saúde das populações.
Num tempo em que voltam a ressoar vozes que apelam ao recurso a parcerias público-privadas (PPP), a resposta à crise que corrói o SNS não passa pela privatização disfarçada dos cuidados de saúde. Longe de remendarem as fissuras estruturais do sistema, as PPP arriscam agravar a segmentação do acesso, desviar recursos e profissionais do sector público e comprometer a equidade, fragilizando a sustentabilidade do sistema no seu conjunto.
O caminho residirá numa profunda alteração do quadro organizacional e legal dos hospitais públicos, dotando-os de instrumentos de gestão ágeis e de real autonomia orçamental, financeira e de recrutamento, que lhes permita dar respostas que se coadunem com as necessidades concretas das populações. As pessoas merecem lugar de destaque, mas paradoxalmente, a crise de recursos humanos é, talvez, a chaga mais profunda do SNS na actualidade. A fuga de talentos não se estanca apenas com apelos à missão ou ao espírito de serviço público, mas com políticas concretas que assumam as carreiras como factor diferenciador, aliviem o peso da burocracia e garantam acesso a formação contínua e especializada de vanguarda.
Urge proporcionar aos profissionais processos de avaliação que espelhem o seu real desempenho assistencial, em linha com a qualidade clínica demonstrada. A valorização da opção preferencial pelo SNS, a disponibilização de ferramentas de informação científica de referência, bem como o desenvolvimento de sólidas parcerias com a academia, são elementos centrais de uma estratégia de atracção e retenção do talento.
O SNS é mais que um serviço que o Estado presta, é uma causa nacional que nos convoca a todos, pelo que a sua defesa intransigente e a sua renovação, exigem compromisso político que não vacile e investimento sustentado que não desvirtue a visão de futuro que, apostando na inovação e na modernização de estruturas e processos, deve colocar, verdadeiramente, as Pessoas no centro. É imperativo agarrar o desafio do acesso - que se esbate para alguns -, das listas de espera - que se alongam -, da sustentabilidade financeira - que nos assombra -, da sangria dos recursos humanos - que nos fragiliza -, da inovação - que tarda em chegar -, da relação com o sector privado - que exige clareza.
Que a promessa do SNS não se perca no labirinto da inércia e da desilusão, mas se renove com a coragem, com o engenho e com a dedicação de todos quantos, num país que se quer vencedor, acreditam na dignidade do acesso à saúde como fundamento inalienável de uma democracia madura, suportada por um SNS público e pujante.
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