Na natureza, a ordem afirma-se como um princípio estruturante. Desde os ciclos cósmicos que regem o sistema solar até à organização interna das colónias de abelhas e formigas, tudo obedece a lógicas de estrutura, função e continuidade. Estas espécies eusociais operam segundo uma divisão de tarefas, revelando uma lógica de eficiência e harmonia que espelha, de certo modo, alguns ideais de ordem nas sociedades humanas e na política internacional. No entanto, ao falarmos de “ordem mundial”, entramos num terreno ambíguo. Mais do que um conceito fixo, trata-se de uma construção dependente do ponto de vista a partir do qual é formulada – exigindo, por isso, um olhar crítico sobre quem define a ordem, com que fins e com base em que valores.
Na perspetiva ocidental, a ideia de ordem está intimamente ligada ao modelo da democracia liberal, hoje profundamente fragilizado, quase em estado de coma político. Este enquadramento ideológico estruturou a configuração do sistema internacional no pós-Segunda Guerra Mundial, conferindo legitimidade à liderança ocidental e aos valores liberais como pilares da ordem vigente. Sob uma lente realista, a ordem mundial assenta na distribuição do poder entre Estados, privilegiando dimensões militares e económicas. Neste quadro, os Estados Unidos mantêm-se como a potência dominante, embora inseridos numa hegemonia em transformação, confrontada com desafios sistémicos e novas dinâmicas de poder.
Porém, esta reconfiguração do sistema internacional não é percecionada de forma homogénea. O que para uns é percebido como declínio ou instabilidade, para outras regiões do mundo, representa uma fase de reposicionamento estratégico ou de afirmação. A pluralidade de leituras sobre esta fase de transição encontra respaldo na etimologia do conceito de “crise”, que remonta ao grego krisis, significando decisão ou julgamento – uma conjuntura crítica que implica escolha e redefinição.
Neste sentido, o interregno que atravessamos, enquanto crise da ordem global, pode ser encarado como uma oportunidade para repensar e questionar as narrativas dominantes das grandes potências. Do ponto de vista ocidental, torna-se imperativo promover uma ordem mais inclusiva, plural e equitativa, que integre as vozes fora do eixo hegemónico tradicional. O mundo não se resume aos Estados Unidos, à China ou à Rússia. As potências médias e emergentes afirmam-se como atores cada vez mais relevantes, capazes de posicionar-se no sistema internacional e geopolítico com estratégias astutas, pragmáticas e transacionais.
Contudo, para além da análise macroestrutural da (des)ordem, importa questionar como este caos se manifesta no quotidiano e de que forma podemos habitá-lo. A visão agostiniana da paz – tranquilitas ordinis – oferece uma alternativa. Num tempo pautado pela aceleração e incerteza, Agostinho concebe uma forma de convivência ancorada na justiça, na humildade e na harmonia, cultivadas a partir das micro-sociedades. É na ordem interior e nas comunidades que se pode semear uma resposta ética e espiritual ao tumulto global.
Enquanto as grandes potências se afirmam e impõem as suas narrativas e visões do mundo, talvez este seja o momento de regressar, ainda que paulatinamente, à Polis. Nesta perspetiva, torna-se possível uma renovação social e política alicerçada na proximidade e na reconstrução do sentido de pertença, permitindo um maior controlo e agência comunitária.
Esta proposta de revalorização das cidades-estados contrasta com uma dinâmica global obcecada com a previsão e o controlo geopolítico, esquecendo que, tal como na natureza, a ordem pode emergir da harmonia local e da cooperação funcional.
Aliás, é importante recordar que a própria ideia de uma ordem estável é uma ilusão. Paradoxalmente, até na física a desordem está inscrita na própria lógica da ordem cósmica, revelando que o caos e a estrutura não são opostos absolutos, mas dimensões complementares de um mesmo sistema.
Por isso, as grandes potências do futuro não se medem pela extensão territorial, mas pela lucidez de quem se antecipa à efemeridade da grandeza no presente.