A série da Netflix Adolescence alertou as consciências para a existência de realidades que os (pré) adolescentes conhecem e os adultos não, contribuindo para a discussão de um fenómeno observado globalmente. A exposição das crianças ao mundo através dos seus telemóveis tem, infelizmente, levado ao confronto com indivíduos que, já eles próprios, foram socializados por outros “criadores de conteúdos”. Atribui-se a responsabilidade pelas frustrações de cada um às feministas, aos transexuais, aos imigrantes. Esta solução fácil incentiva ao ódio por estas outras pessoas. Inflama-se o rapaz, que é homem, que é “duro”, que não tem de aprender história e ciência na escola, mas sim ganhar dinheiro, porque os carros, os destinos “dubaiescos” e a roupa, são o que lhes dá poder, nomeadamente, sobre as mulheres. Mulheres essas que, ou os querem destruir, ou “se vendem” por sinais de riqueza, ou cumprem, poucas, com os requisitos de boas donas de casa, cuidadoras, sem um “body count” (número de parceiros) expressivo.
Se a adolescência é um período de descoberta, de afirmação, de insegurança, de dúvida, determinante no curso da vida futura, a aprendizagem do que sejam os relacionamentos sexuais ser feita por via da pornografia e de adolescentes ou homens que odeiam as mulheres vai formar outros adolescentes à sua semelhança. Entre a ignorância, a infelicidade, a inabilidade social e o ódio, surge o crime.
Três jovens adultos, com visibilidade no TikTok, são suspeitos de, em grupo, terem violado uma rapariga de 16 anos, filmado a violação e divulgado as imagens, que terão sido vistas por milhares de pessoas. Perante o início de um processo penal com eles como arguidos, manifestaram, nas redes sociais, sentir-se injustiçados, perseguidos e, mais uma vez, postos em causa pela “mulher mentirosa”. Se o mito de que a mulher que denuncia a violação está a mentir persiste nas crenças coletivas, neste caso, as redes sociais dos suspeitos, veiculando imagens e palavras dos próprios, muito contribuíram para o contrariar.
Perante este “estado de sítio”, em Portugal, o debate público tem circundado a eliminação de conteúdos da disciplina de “Educação para a Cidadania”. Ora, o Estado Português, nomeadamente enquanto parte da Convenção de Istambul, e por força da recente Diretiva da UE relativa ao combate à violência contra as mulheres, tem a obrigação de fazer justamente o oposto. Os artigos 34.º e 35.º desta Diretiva impõem medidas preventivas desta violência: a sensibilização das pessoas, desde uma idade precoce, de forma adaptada, para a promoção da igualdade de género e do respeito mútuo. Esta consciencialização deve passar, designadamente, pela prevenção da ciberviolência, fomentando um “compromisso crítico com o mundo digital” e por “medidas específicas para prevenir a violação” que enfatizem “o papel central do consentimento nas relações sexuais, que deve ser dado voluntariamente em resultado da livre vontade da pessoa” e que reforcem o reconhecimento de que relações sexuais não consensuais constituem crime. A discussão tem de visar, então, incrementar, a educação para a cidadania, e não o contrário.
Uma última nota, para o processo criminal em curso: verifique-se se as medidas de coação em vigor são adequadas a evitar a continuidade da atividade criminosa, nomeadamente a que passa pela revitimação através de meios digitais e garanta-se à vítima as suas prerrogativas enquanto vítima com especiais necessidades de proteção; no seguimento da investigação, atente-se na definição do crime de violação pela inexistência de um consentimento livre e voluntário e em todas as suas agravantes, nos termos do Direito Internacional, assim como, na postura dos arguidos. Isto para que saibamos, como comunidade, que a liberdade sexual “das nossas crianças” é efetivamente protegida e que a reabilitação e prevenção da reincidência são sopesadas em face da preocupante realidade, e não de um otimismo, tantas vezes, nestes casos, desadequado às circunstâncias.