Na semana passada assinalaram-se 22 anos desde a invasão do Iraque. Antes disso, em fevereiro, a guerra na Ucrânia completou três anos. São dois conflitos situados em geografias distintas, com estratégias e narrativas próprias, mas que, à sua maneira, revelam as contradições da ordem internacional e os limites do discurso universalista quando confrontado com interesses brutos e realpolitik.
Hoje, já encontramos uma pletora de análises sobre as lições da guerra no Iraque, as repercussões para o país e a região do Médio Oriente. É, porém, pertinente olhar em retrospectiva e questionar, qual foi o propósito da guerra? No livro, The Tobacco Keeper, o escritor iraquiano Ali Bader, inspirado pelos heterónimos de Fernando Pessoa, retrata a dissolução identitária de uma personagem cujas múltiplas facetas se fragmentam com as catástrofes que abalaram o Iraque. A sua desintegração simboliza a erosão do corpo político nacional, num país onde a guerra destrói, desloca e perpetua ciclos de violência.
Este retrato literário é um espelho do impacto profundo que os conflitos armados têm nas estruturas sociais, políticas e subjetivas – uma realidade que também se desenha, embora sob outras formas, na guerra em curso na Ucrânia. Daqui a algum tempo, seremos inevitavelmente confrontados com a mesma pergunta sobre o propósito da guerra no país. As respostas, tanto no passado como no presente, são multidimensionais – reflectem os interesses estratégicos e as disputas de múltiplas narrativas, em que algumas se dissipam e outras prevalecem.
O facto é que as lições extraídas destas duas guerras contemplam apenas a lógica binária da vitória ou a derrota, ignorando o essencial: as vítimas. Ou, como são apelidadas de forma técnica, danos colaterais. São elas a maior tragédia, aquela para a qual não há retorno nem compensação. Neste sentido, a luta contínua que se encorajou, tantas vezes justificada, parecia ecoar a advertência do poema da Eneida: timeo Danaos et dona ferentes – temo os gregos, mesmo quando trazem presentes. Esta frase continua a ressoar, entre promessas de paz e realidades de destruição numa dinâmica de poder assimétrico.
Neste contexto, os encontros em Riade espelham a busca por um acordo que dificilmente trará alento a um país que lutou com todas as forças pela sobrevivência e, acima de tudo, pela dignidade. O facto de esta reunião acontecer entre os Estados Unidos e a Rússia, na Arábia Saudita, indica um cenário marcado por interesses sobrepostos que vão muito além da Ucrânia e que tenderão a convergir noutros teatros geopolíticos, em escalas tanto micro como macro.
Em primeiro lugar, a reunião enquadra-se na política de neutralidade estratégica do Reino, que conseguiu cimentar relações tanto com os ucranianos como com os russos, tendo inclusive mediado as trocas de prisioneiros. Para além disso, é provável que Donald Trump procure um encontro direto com Vladimir Putin, e a Arábia Saudita poderá ser o palco ideal para tal reunião.
Num plano mais profundo, Riade afirma-se como mediador internacional, procurando garantir uma posição privilegiada nas conversações entre os Estados Unidos e o Irão – conjuntura em que a relação russo-iraniana pode ser instrumentalizada, sobretudo à luz do acordo estratégico assinado por ambos no início de janeiro. Por fim, a Arábia Saudita reforça-se como actor fulcral no panorama global e regional da segurança, elevando o seu perfil diplomático e tornando-se uma potência incontornável para os interesses americanos, russos e chineses.
Neste sentido, o papel da Europa volta a ser ofuscado, em grande medida, por responsabilidade própria. Embora os países europeus manifestem intenção de manter o apoio à guerra e tenham despertado para a urgência de uma autonomia estratégica, a consolidação de uma força militar europeia integrada levará ainda vários anos. E caso o conflito venha a reacender-se de forma mais intensa na Ucrânia ou noutro país, já não será travado com tropas convencionais, mas com sistemas de armamento sofisticado, plataformas de guerra autónoma, drones letais, inteligência artificial aplicada ao campo de batalha e capacidades cibernéticas ofensivas. Por isso, o investimento europeu no domínio da defesa deve abranger os sectores críticos da tecnologia avançada.
Todavia, importa ressalvar a questão inicial, em modo de reflexão: qual o verdadeiro propósito da guerra?
O facto é que a guerra nunca trouxe vitórias absolutas. Por sua vez, os acordos de paz raramente, são de facto, sobre a paz. Se o fossem, os protagonistas à mesa não se limitariam aos Estados em conflito, mas incluiriam também representantes da sociedade civil, especialmente as mulheres e as minorias, que continuam excluídas dos processos de negociação.
Apesar de décadas de experiência em guerras e de um vasto aparato de instituições internacionais dedicadas à paz e à resolução de conflitos, que na atualidade também falharam como mediadoras, resta-nos apenas a visão sombria de Orwell: uma bota a pisar num rosto humano – para sempre.