Opinião

Carta ao futuro: de Cícero ao ODS 18

Carta ao futuro: de Cícero ao ODS 18

Tiago Moreira de Sá

Eurodeputado eleito pelo Chega

De acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), milhares de milhões de euros são desviados anualmente nos países em desenvolvimento, fundos que poderiam – e deveriam – ser aplicados na saúde, na educação, nas infraestruturas e na justiça. Sem confiança nas instituições, o contrato social não é possível. Sem ética, as instituições são máquinas administrativas desprovidas de sentido, operando no vazio

A Europa, cuja autoridade moral há muito se encontra abalada, desperta uma vez mais sob o peso de novas manchas éticas. A recente denúncia de corrupção envolvendo o Parlamento Europeu e a gigante tecnológica Huawei voltou a expor a vulnerabilidade das instituições diante dos desvios morais. A polícia belga, que conduziu buscas em Bruxelas e Portugal e detenções em França, revelou a complexidade e a extensão dos esquemas ilícitos no seio do poder político no PE. Este episódio nefasto é apenas mais um sintoma de um problema sistémico que atravessa fronteiras e épocas: a corrupção como erosão silenciosa e insidiosa do pacto entre governantes e governados.

Cícero teria certamente deixado escapar um sorriso amargo. Em Dos Deveres (De Officiis), epístola redigida sob o signo da urgência, entre o assassinato de Júlio César – morto à facada em plena sessão do Senado – e a sua própria execução iminente, Cícero traça, já exilado geográfica e simbolicamente na solidão da sua villa de Puteoli e no ocaso da República em ruínas, um mapa da honra que permanece surpreendentemente atual. Na forma de carta ao seu filho Marco, o texto propõe uma meditação sobre a responsabilidade do cidadão e, sobretudo, do homem público perante a justiça, a honestidade e o bem comum. O político, para Cícero, é menos um mestre da persuasão e do que um sacerdote do bem comum – alguém que serve, e não que se serve, da res publica. E é neste horizonte ético que a corrupção deve ser entendida: mais do que uma falha, é uma heresia, a profanação de um templo cívico e de um pacto sagrado.

Em De Officiis, Cícero propõe uma reflexão profunda sobre o que significa viver conforme o officium – termo latino que frequentemente traduzimos por “dever”, mas que carrega uma ressonância mais rica e concreta. Officium é mais do que uma obrigação abstrata: é o “dever em ação”, o vínculo entre o indivíduo e a ordem moral que estrutura a vida pública e privada. Etimologicamente, o termo sugere “aquilo que se faz em favor de outro” (ob + facere), isto é, um gesto voltado para o outro, em direção ao bem comum. Traduzido por “deveres”, perde-se por vezes essa dimensão encarnada, ativa e relacional. Para Cícero, o officium é ao mesmo tempo exigência ética e exercício cívico: é no cumprimento dos nossos ofícios – como pais, magistrados, cidadãos – que revelamos o nosso carácter.

O dever, assim entendido, não é um fardo imposto de fora, mas uma fidelidade interior à justiça, que dá forma e dignidade à vida humana. Etimologicamente compatíveis, semanticamente afins e, sobretudo, eticamente inseparáveis, dever e ofício remetem, pois, por via da convergência do seu campo semântico, para a ideia de que servir – seja no espaço político, profissional ou pessoal – não é apenas o elenco de tarefas a cumprir, mas o compromisso com uma ordem moral que transcende o interesse próprio. Onde o ofício se divorcia do dever, nasce a corrupção, que, na sua essência, não é outra coisa senão uma traição ontológica ao contrato ético que funda a vida em comum. Ao substituir o interesse público pelo interesse pessoal, o corrupto dilacera o tecido moral da comunidade, violando o pacto sagrado que vincula governantes e governados – pondo assim em causa a própria Democracia.

Foi esta carta com mais de dois mil anos – de um pai ao seu filho e de um humanista à Humanidade – que inspirou a minha proposta de revisão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que apresentei em Bruxelas há dias e que levarei à Reunião de Alto Nível em Nova Iorque, em julho deste ano. Esta proposta, que surge como uma resposta política a uma crise moral, prevê a criação de um novo objetivo, o “ODS 18”, sob o lema “Combater a Corrupção e Promover a Governação Transparente”, que acresce e impacta diretamente em vários dos outros 17 e lhes dá novas ferramentas para a sua implementação concreta. Ao reconhecer a corrupção como um obstáculo sistémico ao progresso, a proposta assume um carácter civilizacional: trata-se de libertar recursos capturados pelo vício para reinvesti-los no bem comum em países em vias de desenvolvimento.

De acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), milhares de milhões de euros são desviados anualmente nos países em desenvolvimento, fundos que poderiam – e deveriam – ser aplicados na saúde, na educação, nas infraestruturas e na justiça. A criação de agências anti-corrupção independentes, a proteção de denunciantes (whistleblowers) e jornalistas, e a promoção da transparência nos orçamentos dos estados dos países recetores da ajuda são medidas não apenas técnicas, mas existenciais. Combater a corrupção é resgatar a confiança perdida. O “ODS 18”, como lhe chamei, articula-se de forma transversal com todos os outros objetivos fundamentais, como a erradicação da pobreza ou o acesso universal à saúde e à educação. A integridade institucional torna-se, assim, condição prévia do desenvolvimento sustentável. Sem confiança nas instituições, o contrato social não é possível. Sem ética, as instituições são máquinas administrativas desprovidas de sentido, operando no vazio.

O “ODS 18” propõe, assim, uma resposta articulada e pragmática a um desafio – na verdade, um vício – estrutural que atravessa fronteiras e sectores: a normalização da corrupção como parte do funcionamento institucional. Ao estabelecer metas concretas (desde a criação de agências independentes à recuperação de ativos desviados) e ao interligar-se com os pilares fundamentais do desenvolvimento sustentável, esta proposta assume um papel catalisador e ordenador. Não se trata apenas de acrescentar um novo objetivo à tão conhecida Agenda 2030, mas de reforçar a espinha dorsal ética de todos os restantes. Acreditamos verdadeiramente no desenvolvimento? Então vamos atacar uma das grandes causas para a falha sistémica da maior parte dos ODS e que é o grande elefante na sala que ninguém quer ver e do qual ninguém quer falar: a corrupção no uso de dinheiros públicos, também na área do desenvolvimento e da cooperação. Os fundos públicos, quer sejam dos Estados doadores, das multilaterais ou, o que motivou a minha proposta, da União Europeia, devem chegar aos reais destinatários e não acabar nos bolsos de alguns.

Tal como ensinou Cícero ao seu filho – e a todos nós –, o combate à corrupção é, na verdade, uma reconstrução moral do espaço público. A democracia sobrevive não apenas por leis bem desenhadas, mas por cidadãos comprometidos com a virtude, a justiça e a verdade. No final do dia, o Estado de direito repousa sobre o estado de consciência. A corrupção não é, portanto, apenas uma chaga política, mas um problema filosófico de primeira ordem. Exige de nós, não apenas indignações momentâneas ou improvisações ad hoc, mas um esforço contínuo de regeneração ética. Pois onde se instala a opacidade, a verdade definha. E o definhamento da verdade é uma força poderosa que arrasta consigo tudo o resto.


Quando os povos já não acreditam na integridade dos seus governantes, tornam-se cínicos ou submissos, reféns da descrença ou do servilismo. Combater a corrupção é condição indispensável da própria liberdade dos povos. É por isso que, como bem percebeu Cícero, combater a corrupção é, num sentido essencial, endereçarmo-nos aos nossos filhos

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