Docente de Direito comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Para concluir a análise do caminho do Presidente Trump até ao trono, parece-me adequado rever o início da sua governação à luz da nova versão de uma Branca de Neve que pega em armas e engrandece anões
1) Do trono às escadas da mina
Dia 20 de março de 2025 passam 2 meses desde que o Presidente Trump (re)tomou o poder e chegou ao “trono” da sala oval que simboliza o topo do poder executivo dos Estados Unidos da América (EUA). Nesse mesmo dia regressa aos cinemas uma Branca de Neve da Disney, numa versão muito diferente, agora combativa e armada, prestes a enfrentar as bruxas e vilões nos seus castelos.
O filme, envolvo em polémicas, que não iremos abordar aqui, não deixa de nos dar uma oportunidade para rever o mundo à nossa volta e encontrar alguma magia inesperada que parece ter chegado para reunir e reforçar uma União Europeia (UE) que se encontrava enfraquecida e diminuída há anos. Os 27 Estados-Membros foram, nos últimos anos, 27 anões que, agora, sozinhos perante inimigos e (ex?) aliados comuns podem estar à altura do momento e serem uma “Europa Forte Outra Vez” (se é que alguma vez o foi).
A ameaça russa, o abandono ou desinteresse dos EUA, a China à espreita, mas em crise, e a realidade a impor-se - não basta um “mercado comum”, é necessário um mecanismo de defesa comum, organizar as nossas fontes e reservas energéticas, pensar tecnologia ou a ciência conjuntamente – parecem ser as escadas reluzentes na mina que apelam a que cada país da UE grite “Eu vou! Eu vou!” para um futuro melhor.
2) Os (vinte e) sete anões
Para 27 anões (ou Estados-Membros) é difícil encontrar imagens individualmente, pelo que escolho os mais marcantes, tentando identificar características de cada um dos sete anões em alguns destes países europeus.
Kaja Kallas, A alta representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros, ao lado de Radoslaw Sikorski, ministro polaco dos Negócios Estrangeiros
Nas últimas semanas, a Alemanha liderada pelo quase-Chanceler Merz veio a assumir a posição de (i) Mestre, muito mais do que vimos em qualquer passado recente. O programa para “rearmar e modernizar a Alemanha” (palavras que em tempos nos pareceriam assustadoras) soam agora a beijo de príncipe encantado. A Europa ocidental, sem EUA e mais longe do Reino Unido, não pode ficar refém da França, que é, cada vez mais, o anão (ii) Zangado, consigo próprio, com o mundo e dividido. Macron bem pode tentar seduzir além-fronteiras, mas a sua fraca relevância em casa, e o chauvinismo francês que não é tão diplomático como a língua faz crer, exigem alianças, cedências e reforço de eixos dentro da UE; o anão (iii) Feliz e em contraciclo (agora que todos miniciclos políticos, quando antes eram eles) parece ser a Itália, que tem um governo estável, conseguiu pastas importantes na nova estrutura governativa da União e pode sair animada se as economias à sua volta reaquecerem, como parece estar a acontecer; já a Espanha parece estar constipada e pode ser o nosso (iv) Atchim, também instável politicamente (como a França ou Portugal), mas numa incerteza e conflitos regionais e no seu interior que recomendam um médico para uma cura mais sistemática (que, de resto, toda a UE parece precisar).
Mais tímido e (v) Dengoso será a Polónia que, discretamente, tem sido um dos maiores contribuidores para a defesa da Ucrânia (a proximidade geográfica não será irrelevante). O outro Donald, Tusk, não fará olhos dengosos, mas será um dos principais líderes europeus a pedir que todos se reforcem e tem o peso e a experiência de conhecer como funciona, por dentro, a UE; o anão (vi) Dunga deveria ser a Roménia, o sétimo país mais populoso da União, mas demasiadas vezes esquecido ou gozado como o anãozinho que nos habituámos a ver no filme. Basta olhar para a grande Roménia, cheia de fronteiras com países candidatos à entrada na UE (a começar pela Ucrânia) e relações tensas com a Hungria, especialmente depois de Orbán ter gozado com autoridades romenas há um ano. Por fim, diria que o sétimo anão (vii) Soneca é o “Benelux”, a capital da UE, que parece estar adormecida ou, pelo menos, muito entorpecida, a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo são o coração de uma Europa que parece ter comido uma maçã envenenada e, antes que tome qualquer medida, aprove qualquer regulamento, “desburocratize”, enfrente os seus problemas, tem de acordar de um longo sono, maior do que o de qualquer Bela Adormecida.
3) Os outros vinte anões
Acelerando e encurtando, olhemos para os outros 20 anões, com o mesmo ritmo que se vai querendo imprimir a uma União a “duas velocidades”, a três ou a mais. Podemos ver uma UE desenhada em cima de um mapa de uma Europa em que a Rússia é bem visível e assustadora, no Norte ou no Oeste. A sul teremos sempre a Grécia, berço do pensamento que distingue a cultura europeia e, ainda hoje, pode justificar algumas formas diferentes de pensar, governar e aplicar o Direito, em comparação com outras geografias e a Oeste cá estará Portugal, no continente ou nos Açores, sendo ainda relevante a Gronelândia da Dinamarca para quem ande em busca de pontos de referência nesta Floresta que é o continente europeu.
As últimas semanas, entre ameaças de impostos, ameaças diretas – à Dinamarca, por exemplo – e desconsiderações a um aliado (a Ucrânia) – deixaram formar-se a ideia de “inimigo comum” e isso é um fortíssimo como “call for action” (“apelo à ação” parece-me uma tradução sem a força suficiente).
No entanto, dos 7 aos 27, as peças do tabuleiro das capitais europeias parecem estar a mover-se com maior vigor do que nos lembramos de ver e podemos ver concretizado o slogan com que alguns colunistas já têm brincado. O que o Presidente Trump vai conseguir é “Make Europe Great Again”.
4) A Bruxa Má perante o “espelho meu”
Já tínhamos tido Trump num primeiro mandato, mas sem saber bem o que fazer, e controlado pela inexperiência, por um partido republicano onde restavam alguns que lhe faziam frente; já tínhamos Putin ou Xi Jinping, mas esses estavam distantes e eram “assumidos”, não eram uma ameaça “de dentro”. Trump agora tem as características da madrasta má que quer expulsar a Branca de Neve do castelo, ou os países da NATO da própria Aliança. E, principalmente, a incapacidade de perceber uma ideia essencial da diplomacia, da feitura de leis ou de salsichas: ninguém quer, pode ou deve saber como são feitas.
O momento-chave na sala oval com o Presidente Zelensky, para mim, é quando o Vice-Presidente J. D. Vance (que teve tantas tiradas infelizes ali) apela ao Presidente Trump para que se mudem para uma sala privada para falar. Trump, feito Rainha Má em frente ao espelho (“há alguém mais bela do que eu?”) responde que aquele será um excelente momento televisivo e de audiências e o Secretário de Estado Rubio encolhe-se no sofá e reduz-se à insignificância a que ficará reduzido o seu poder como “ministro dos negócios estrangeiros”. Já sabíamos, mas vimos em direto, Trump prefere ratings a tudo o resto: a paz, a prosperidade, até uma vitória diplomática histórica. Só vê os resultados e as audiências de curto prazo.
Recordando-nos que a América do Norte não tem só os EUA, podemos rever os caçadores que, em muitas versões, se solidarizam com a Branca de Neve e a tentam proteger e vê-los, com especial força, no embate que se tem verificado especialmente em termos alfandegários, com dois líderes a ver a sua popularidade e força (re)nascer no embate com o Presidente Trump.
A sul, no México, a Presidente Cláudia Sheinbaum conseguiu estancar algumas das promessas de “tarifas” ou impostos mais elevados e conseguiu o reconhecimento do novo-velho presidente dos EUA em mais do que um telefonema, nomeadamente a propósito de questões de segurança. Depois de ter feito várias ameaças vãs, a relação com o México foi das primeiras a, aparentemente, estabilizar. A norte, no Canadá, o antigo governador do Banco do Canadá, durante a primeira crise, e do Banco de Inglaterra, que a ajudou a reerguer-se de uma crise, acaba de assumir funções de Primeiro-Ministro, sucedendo a Justin Trudeau, conseguindo reconquistar muito do capital político que o seu antecessor desperdiçara, de muitas formas diferentes (a última foi ao sair do Parlamento, no último dia, com a língua de fora para as câmaras). O Canadá vai ter eleições no final do ano e Marc Carney poderá conseguir uma inesperada vitória pelo partido liberal e, mais do que isso, poderá ser o melhor aliado para a UE além-Atlântico durante os próximos tempos atribulados.
Tal como a Branca de Neve foi tentada com uma vistosa maçã vermelha, também a UE tem em cima da mesa propostas atrativas e potenciais alianças, umas que deixaremos para o campo dos “príncipes encantados” e outras mais realistas e que têm de ser enfrentadas.
Por um lado, a fechar o ano de 2024, a UE e quatro países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) concluíram, a 6 de dezembro, as negociações para um acordo de parceria inovador, composto por três pilares: político, de cooperação e comercial. Alargando o seu mercado, por esta via, as empresas europeias veriam a sua atividade reforçada, protegida perante potenciais reduções mais a norte, e alargariam a sua área de influência. Encontrar mercados “substitutos” é importante, mas reduzir barreiras, garantir que estes países continuam a ser nossos parceiros preferenciais e não “se viram” para a Ásia ou estes “novos” EUA é algo essencial. O anão zangado francês não devia insistir em dificultar estas negociações. É certo que os agricultores (os mesmos que sempre rejeitarão a Ucrânia no seio da UE) nunca vão aceitar trincar esta maçã… mas em quem votam eles? Prosperidade para todos não os vai reconquistar?
Por outro lado, continuará a haver cantos de sereia, propostas chinesas para comprar os nossos portos, investir nos setores essenciais europeus, tornar a Europa cada vez mais dependente de uma China que também precisa de descobrir novas formas de reaquecer os seus motores. E se o investimento de oligarcas russos ficou parado, ou congelado, por uns tempos, será que o capital de países africanos que chega à UE continua a ser devidamente fiscalizado? Há level-playing field ou estamos a prejudicar(-nos) entre regras antibranqueamento de capitais ou de proteção ambiental, social de boa governação que não sobrecarregam da mesma forma instituições estrangeiras
7) As Brancas de Neves e os Príncipes Encantados
Durante os últimos dois séculos, talvez desde as Revoluções americana e francesa, os EUA foram uma princesa com que nunca foi fácil lidar. Especialmente para quem tinha colónias na América do Norte.
Já escrevi sobre vários dos Founding Fathers por aqui (os fundadores dos EUA e do seu sistema constitucional). Escrevi até sobre as Founding Mothers, e uma em especial, citando as cartas que trocou com o seu marido, John Adams. Acho que nunca escrevi sobre aquele a quem gosto de chamar o “Founding Puto” dos EUA. Há 200 anos, John Quincy Adams (JQA) assumiu funções como 6.º presidente dos EUA (filho do 2.º, John Adams). Tentou fugir à política, procurando focar-se na advocacia, mas foi chamado por Washington para ser embaixador nos Países Baixos. Seguiram-se a Prússia, a Rússia e o Reino Unido, antes de ter uma carreira que começou pelo Massachusetts até ser Secretário de Estado e presidente (de 1825 a 1829).
Num dos primeiros dias da independência dos EUA, a 4 de julho de 1821 (cinco anos depois do dia em que morreriam o seu pai, John Adams, e Thomas Jefferson), JQA fez um dos discursos mais lembrados da sua carreira. Então deixou várias afirmações hoje muito citadas, quando defendeu que a América “não vai para o estrangeiro à procura de monstros para destruir”, ou que uma América que aspirasse à liderança mundial, mesmo em nome de ideias nobres, ia ser desviada do seu caminho: “poderia tornar-se a ditadora do mundo. Deixaria de ser a governante do seu próprio espírito”. Apesar de a política externa americana se ter deformado e lutado contra algumas das formas que JQA previu, não foi capaz de enterrar estas palavras poderosas.
Este foi um discurso feito enquanto Secretário de Estado e porta-voz de um presidente (James Monroe), mas tem sido deturpado muitas vezes. Como o próprio Presidente veio a explicar, mais tarde, num discurso feito ao Congresso, em 1823, faz parte de uma doutrina/aviso às nações europeias de então de que os EUA não tolerariam mais colonizações ou “monarcas fantoches” no seu continente. JQA aceitaria intervir no exterior em defesa dos valores fundacionais dos EUA. E, mais importante, os EUA viriam “defender” a Europa nas Guerras do século XX e o seu apoio (ainda que não desinteressado) foi decisivo na reconstrução europeia.
Julgo que hoje vivemos mais um momento de tomada de consciência de que não há princesas ou príncipes encantados, especialmente na política internacional. Os ingleses votaram a favor do Brexit há quase dez anos, e ainda temos todos o coração partido (a partir de abril, as fronteiras ainda serão mais fundas). A UE está cheia de feridas, mas este momento pode ser decisivo para todos os animais da Floresta se juntarem e construírem algo de novo e surpreendente, da energia à defesa, da alimentação à tecnologia. É tempo de, também a Europa fazer a pergunta que a Branca de Neve faz a si própria numa das novas (grandes) músicas do filme de 2025: “will she lead or will she be led?”. Vamos ser liderados ou liderar?
Quem diria que os velhos vilões, a Alemanha e o Japão, podem ser príncipes modernos, porque têm economias e sistemas políticos que nos levam a querer alianças com eles. Quem diria que os inimigos da guerra fria, a Rússia e os EUA, estariam agora a viver uma estranha relação… É tempo de os (vinte e) sete anões defenderem a Europa, a nossa Branca de Neve, e cantarmos juntos, pela reluzente escada da mina, vendo as estrelinhas da bandeira europeia, “Eu vou, eu vou, …”, rumo à estrela que concretiza estes desejos.