Opinião

DPOC e ambiente: quando a solução também pode ser o problema

DPOC e ambiente: quando a solução também pode ser o problema

José Albino

Presidente da Respira - Associação Portuguesa de Pessoas com DPOC e outras Doenças Respiratórias Crónicas e do Movimento Doentes pela Vacinação (MOVA)

As instituições de saúde, os profissionais de saúde e, em certa parte, as associações de doentes, têm sensibilizado as autoridades envolvidas e a própria sociedade para o impacto ambiental dos inaladores e a necessidade urgente de privilegiar os que têm um perfil mais ecológico, sem prejuízo da situação clínica do doente

Quando temos um problema de saúde, a prioridade é clara: encontrar um tratamento efetivo e, se possível, uma cura para o mesmo. Este é o princípio para qualquer tipo de patologia e, no caso da Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), não sendo possível almejar a cura, o que procuramos é ter uma terapêutica que alivie os pesados sintomas que limitam enormemente a nossa vida.

Felizmente esse alívio já existe e vem na forma do que, comummente, se designa por inalador. Grosso modo, existem vários tipos destes dispositivos: pressurizados, névoa suave e de pó seco. A principal diferença está na forma como o medicamento presente nestes dispositivos é “levado” até aos pulmões. No caso dos inaladores pressurizados, esse “transporte” é feito através de um mecanismo impulsionado por gases propelentes, que têm um impacto enorme na camada de ozono. Já os inaladores de pó seco, a inalação do medicamento é feita de forma direta e não carece deste mecanismo assente no gás propelente. Para dar uma perspetiva, a pegada de carbono de um inalador pressurizado é, aproximadamente, 20-30 vezes mais elevada do que a de um inalador de pó seco, por dose equivalente.

Basicamente, o mesmo produto que nos ajuda a aliviar os sintomas está, por outro lado, a agravar os mesmos, de forma indireta, uma vez que causa um dano enorme ao ambiente e todos sabemos que as pessoas com doença respiratória são as mais sensíveis às alterações climáticas e poluição ambiental. Curioso, não é?

Face a isto, as autoridades de saúde, as instituições políticas, os profissionais de saúde e, em certa parte, os representantes das pessoas com doença, têm estado a sensibilizar os atores envolvidos e a própria sociedade para o impacto ambiental dos inaladores e a necessidade urgente de privilegiar os que têm um perfil mais ecológico, sem prejuízo da situação clínica do doente, que é sempre a prioridade. Em Portugal, esperamos que esta questão mereça, cada vez mais, um lugar nas decisões médicas, em articulação com o doente. Por enquanto, continua apenas a ser um desejo nosso e que ainda tarda a acontecer...

É que o mesmo ambiente que tentamos preservar, pode ser o gatilho invisível que dificulta cada respiração. A ciência já confirmou, várias vezes, que a poluição atmosférica não apenas contribui para o desenvolvimento da DPOC, mas também atua como um perigoso catalisador que intensifica sintomas e precipita exacerbações, que podem mudar o curso da doença.

As temperaturas extremas, sejam as mais elevadas ou as muito baixas, cada vez mais frequentes, é um sinal do real impacto das alterações climáticas, que se transformam em inimigos para os pulmões que já se encontram comprometidos.

Depois, há ainda um cenário mais vasto que importa ter em conta: o impacto do setor da saúde nas emissões de gases com efeito de estufa, ainda que nem sempre tido em conta. De acordo com um relatório de 2019 da Health Care Without Harm, que analisou a contribuição dos cuidados de saúde para as alterações climáticas com base em dados de 43 países, a pegada climática deste setor é equivalente a 4,4% das emissões líquidas globais. Os inaladores pressurizados, uma das opções para o tratamento da

DPOC, são um dos maiores responsáveis para as emissões de gases com efeito de estufa, quando se trata de avaliar o conjunto dos produtos farmacêuticos.

Por cá, este impacto já foi reconhecido, assim como a necessidade de transição para alternativas mais sustentáveis. E mereceu mesmo uma reflexão cuidada, que resultou na publicação de um documento de consenso com Recomendações para a Redução do Impacto Ambiental dos Inaladores em Portugal, assinado por várias sociedades médicas e a própria Associação Respira, onde as contas partilhadas pelos especialistas envolvidos mostram que os inaladores pressurizados foram responsáveis, em 2022, por aproximadamente 95% da pegada de carbono da terapêutica inalatória.

O mesmo documento confirma que, “em termos clínicos, parecem não existir diferenças significativas na efetividade do uso de pressurizados ou de pó seco”, pelo que “a substituição de alguns inaladores pressurizados por dispositivos de pó seco constituiria uma redução de gases com efeito de estufa com benefício ambiental relevante”, incentivando mesmo a que tal aconteça.

Tendo em conta que este cenário configura uma espécie de círculo vicioso para a pessoa com DPOC, é urgente quebrá-lo. É que, enquanto tratamos a DPOC com dispositivos que agravam a crise climática, estamos, ironicamente, a contribuir para o agravamento das próprias condições ambientais que prejudicam quem sofre desta doença. Cabe aos profissionais de saúde estar alerta para esta questão, mas também ao doente assumir o seu papel e compreender que, ao optar por tratamentos mais sustentáveis, está a investir duplamente na sua saúde.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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