Opinião

A árvore da Europa: tradição, liberdade e soberania

A árvore da Europa: tradição, liberdade e soberania

Tiago Moreira de Sá

Eurodeputado eleito pelo Chega

Presas neste culto doentio de infidelidade e na ânsia quase pavloviana de repudiar tudo o que emane da Administração Trump, as elites europeias falharam estrondosamente o sentido profundo do discurso de J.D. Vance

“Acima de tudo”, exortava Polónio ao seu filho Laertes, “sê fiel a ti mesmo, e disso há-de seguir-se, como a noite ao dia, que a ninguém poderás ser falso.” Este famoso imperativo que Shakespeare imortalizou em Hamlet não é apenas um mero conselho paternal. Na verdade, trata-se de um princípio ontológico: a lealdade a si próprio é condição para a presença da verdade no mundo. O indivíduo fiel a si mesmo não se fecha, abre-se; não se encerra numa toca impenetrável: inscreve-se numa continuidade de herança e destino.

A Europa, que durante séculos foi a guardiã desse princípio, parece cada vez mais orgulhosa da infidelidade que dedica hoje a si mesma, aos seus antepassados, à sua história, aos valores que foi um dia capaz de inspirar nas esperanças das suas populações, nas mentes dos seus artistas, nas visões dos seus governantes. A traição a si mesma é, na verdade, a traição ao seu princípio vital, da qual decorre, implacável e fatal, a era de inautenticidade que sempre precede os períodos de decadência.

Presas neste culto doentio de infidelidade e na ânsia quase pavloviana de repudiar tudo o que emane da Administração Trump, as elites europeias falharam estrondosamente o sentido profundo do discurso de J.D. Vance na Conferência de Segurança de Munique. O vice-presidente americano não nos dirigiu um sermão condescendente, nem nos impôs uma sentença imperialista: como Polónio a Laertes, exortou-nos à fidelidade a nós mesmos, colocando-nos diante de um espelho cujo reflexo nos devolve tanto a grandeza do nosso passado quanto a sombra do nosso declínio. A nossa tragédia tem sido a de sermos governados por elites medíocres que, diante do espelho, não reconhecem nem uma nem outra.

Porque o perigo que ameaça a Europa, de facto, não vem de fora, mas cresce dentro dela. É um cansaço, uma vergonha, um remorso, um ódio de si própria e das forças que, durante tantos séculos, a fizeram grande. Outrora farol da civilização, dominando a política e a economia, a engenharia e a ciência militar, as artes e as letras, a Europa, liderada por elites relativistas e niilistas, tem cedido às perigosas tentações crepusculares que sempre assombram e ensombram as civilizações.

Vance lembrou-nos de valores fundacionais partilhados pela Europa e pela América. Valores que fazem da Aliança Atlântica mais do que uma mera aliança de interesses – uma aliança de valores, um pacto moral, o prolongamento de uma mesma civilização. Valores em nome dos quais derramámos sangue lado a lado, no Marne, nas Ardenas, na Normandia.

E são esses valores que estão hoje ameaçados, não por inimigos externos, mas pela erosão interna de uma Europa que já não sabe quem é nem aquilo que defende. E quem não sabe aquilo que defende também não pode saber aquilo contra o qual se deve defender.

O que é, pois, a Europa? E o que é esta nova direita que diz “Make Europe Great Again”? Compreender uma, ajuda a compreender a outra. Para compreendermos uma e outra, devemos começar por esclarecer um ponto essencial: aquilo a que chamamos Europa é mais do que um continente, é um destino; é mais do que um espaço geográfico, é um espaço axiológico. A Europa é mais do que um pedaço de terra: a Europa é uma árvore. A Europa é uma certa identidade viva que pode ser comparada a uma árvore de cujo tronco, o Cristianismo, brotam três grandes ramos: o Conservadorismo, o Liberalismo e o Populismo.

O tronco: o Cristianismo. Espinha dorsal da civilização europeia, o Cristianismo é simultaneamente matriz religiosa, moral e filosófica, moldando e definindo as instituições políticas, jurídicas e culturais que sustentam a ordem social europeia. O conceito de dignidade humana, o princípio de uma igualdade natural e inalienável, a noção de uma ordem transcendente, a ideia de um juízo moral – e de um juiz moral, Deus – que limita os excessos do poder e que coloca a vítima no coração da ética: tudo isto nasce da tradição bíblica. O Cristianismo forneceu à Europa um esqueleto espiritual capaz de resistir aos abalos do tempo e aos abusos da tirania. Foi a Bíblia que nos ensinou o valor revolucionário da Liberdade e foi com ela que aprendemos a dizer aos tiranos de todos os tempos e lugares: “Let my people go.” Quando esta referência axial se dissolve, os seus ramos estiolam: o Conservadorismo degenera em dogmatismo, preso num revisionismo romantizado do passado; o Liberalismo em relativismo, capturado pela atomização alienante do indivíduo; e o Populismo em irracionalismo, devorado pela tribalização violenta da identidade.

O primeiro ramo: o Conservadorismo. Sentinela da continuidade, lembra-nos que somos sempre mais do que nós. Pensadores como Edmund Burke e Roger Scruton ensinaram-nos que o mundo não começa com cada geração; que não tem início com a nossa chegada; que começamos no mundo como Camões começa Os Lusíadas: in medias res, “no meio da ação”, quando os barões assinalados já passaram além da Taprobana. Que somos herdeiros antes de sermos inovadores, que somos devedores antes de sermos credores, que somos ouvintes antes de sermos falantes. Que somos, na bela expressão de Bernardo de Chartres, “anões empoleirados nos ombros de gigantes”. O Conservadorismo defende as instituições, a cultura e os costumes como depósitos da sabedoria coletiva, acumulada ao longo dos séculos, preservada e transmitida ao longo das gerações, rejeitando utopias e experimentalismos, desconfiando da engenharia social e reconhecendo que o verdadeiro progresso é lento e enraizado na experiência histórica, na perseverança cognitiva, na prudência moral. Sem Conservadorismo, a Europa perde a sua memória e, com ela, a sua identidade.

O segundo ramo: o Liberalismo. O liberalismo clássico – e não a sua versão moderna degenerada no progressismo delirante e na social-democracia falida – afirma a primazia da pessoa sobre o Estado, do indivíduo sobre o coletivo, da liberdade sobre a coerção. John Locke deu-lhe o seu alicerce filosófico: liberdade, Governo limitado, direito à propriedade, contrato social e direito de rebelião contra a tirania. Este liberalismo originário não repudia a tradição, mas recorda que a defesa da ordem só se justifica se ela assegurar a liberdade, pois a ordem não pode servir de refúgio à tirania. Ao enaltecer a liberdade individual e a dignidade intrínseca do ser humano, o Liberalismo encarna a convicção de que o poder, por natureza corruptível, deve ser domado por limites racionais e morais, por checks and balances institucionais. Nesta tradição de pensamento, as constituições emergem não apenas como meros compêndios de normas, mas como celebrações de um pacto sagrado que submete o poder à lei – um escudo erguido contra o poder e a arbitrariedade, contra a tirania e a anarquia, contra as mãos lavadas de Pôncio Pilatos e contra o voto democrático da turba que escolhe Barrabás.

O terceiro ramo: o Populismo. Ramo mais turbulento e vigoroso da árvore, representa a pulsão democrática contra a tentação oligárquica, a insurreição do povo contra as elites burocráticas, a revolta da vontade de reconhecimento contra a vontade de exclusão. Há mais de um século, Robert Michels ensinou que toda a organização política, incluindo os partidos democráticos, tende a tornar-se uma oligarquia: é a sua “lei de ferro”. O populismo – do jacksonianismo ao trumpismo nos EUA; dos “Levellers” aos “Patriots” na Europa – é a revolta cíclica contra essa cristalização, também ela cíclica, do poder. Sem esse impulso regenerador que está na base da dicotomia elites vs. povo, dos “últimos” contra “primeiros”, não seria possível o avanço e a expansão da representação democrática. Ao contrário do que é comum ouvirmos (em geral, vindo, não por acaso, das elites), o populismo não é uma ameaça à democracia: é, bem pelo contrário, um dos seus modos de revitalização. É natural que o Populismo seja um grito, já que o elitismo é uma surdez. Na sua ardente e turbulenta oposição às elites, o Populismo é uma Câmara dos Comuns que impede a democracia de degenerar em Câmara dos Lordes.

Enquanto o Conservadorismo olha para o vínculo entre gerações e o Liberalismo para a liberdade individual, o Populismo olha para o povo como entidade viva – e, sobretudo, soberana. A nova direita é a herdeira atual desta árvore e nunca será devidamente compreendida sem referência a ela. O Cristianismo fornece-lhe as raízes e o tronco, garantindo a orientação moral e o sentido de transcendência. É conservadora porque visa preservar e transmitir a herança civilizacional. É liberal porque defende que os governos existem para promover e proteger a liberdade individual. E é populista porque recorda às elites que a soberania reside no povo. Os ramos da tradição, da liberdade e da soberania popular exprimem, respetivamente, a Sabedoria do Antepassado, a Dignidade do Indivíduo e a Soberania do Povo. A crise de um atrai a crise dos outros.

A crise atual da Europa — esse cansaço, essa vergonha, esse remorso, esse ódio a si mesma que a consome — nasce da infidelidade a esta estrutura orgânica, da tentação de arrancar as raízes ou podar os ramos em nome de uma modernidade sem antepassados, sem indivíduos e sem povos.

Em 1945, no seu momento refundador pós-apocalíptico, a Europa impôs a si mesma uma contradição que está a devorá-la a partir de dentro: por um lado, a paz; por outro, a culpa; por um lado, a democracia; por outro, a decadência; por um lado, a tolerância absoluta; por outro, o ódio a si mesma. Identificando-se como abjeta e indigna, a Europa confunde-se com a sua própria culpa. O declínio europeu que se observa hoje nos mais variados domínios (cultural, económico, militar, político, moral) é, em grande medida, o corolário dessa conceção penitencial de si própria, paralisada entre as investidas dos seus inimigos e as sombras dos seus fantasmas.

As palavras de J.D Vance são, afinal, shakespeareanas: sê fiel a ti mesmo. A Europa, se quiser sobreviver, deve reencontrar essa fidelidade. Redescobrir os seus valores. Revisitar o seu princípio vital. Pois viver é herdar, mas herdar é também transformar. Cuidar da nossa árvore. Porque se há coisa cruel que a História nos ensina, das páginas mais antigas às mais recentes, é que as civilizações, como as árvores, também se abatem. A árvore da Europa está doente mas não está morta. Percebe-se, pelo medo das suas elites e pela esperança das suas populações, que umas e outras estão a observar o mesmo fenómeno: um dos seus ramos está novamente a dar fruto.

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