Opinião

A mediocridade dos médicos que se recusam a fazer horas extra

A mediocridade dos médicos que se recusam a fazer horas extra

Gustavo Jesus

Médico Psiquiatra, Diretor de Serviço na ULS Estuário do Tejo

É importante que se perceba que os problemas do SNS não existem por causa dos médicos, mas apesar dos médicos, e dos seus esforços para manterem os melhores cuidados possíveis aos seus doentes.

Na passada semana, Henrique Raposo escreveu um artigo de opinião no Expresso, afirmando que se recusava a ser visto por um médico que só quisesse fazer 150 horas extraordinárias, porque, e passo a citar “sem o trabalho além do horário de funcionário, um médico será sempre medíocre e até perigoso para os doentes; não será um médico, será apenas um funcionário médico, um enfermeiro com mais galões no ombro”.

Para além de desmerecer, injustamente, o trabalho dos enfermeiros, com um papel indispensável, não sendo possível comparar desta forma o trabalho entre profissões da saúde, o colunista articula uma série de argumentos incorretos e confusos, que merecem esclarecimento. Não é que eu, ou qualquer outro médico, tenha ficado preocupado com a recusa de Henrique Raposo em ser observado por nós, até porque a carga laboral dos médicos já é suficientemente alta. Mas, para quem leu o seu artigo e ficou com a impressão de que ele podia ter razão, vale a pena esclarecer vários pontos:

1. O primeiro erro é assumir que a recusa a mais do que 150 horas extraordinárias só é feita pelos médicos jovens ou em fase de formação - o que não é verdade. Esta recusa tem acontecido de forma transversal entre gerações e especialidades médicas, por um conjunto de factos fáceis de compreender: a carga de trabalho é cada vez maior para equipas com um número cada vez menor de pessoas à medida que a debandada para fora do SNS continua, o que resulta em níveis cada vez mais elevados de burnout médico. O último estudo realizado entre os médicos portugueses, em 2016, mostrou que 66% dos médicos apresentavam um nível elevado de exaustão emocional, 39% um nível elevado de despersonalização, e 30% um elevado nível de diminuição da realização profissional. Sem surpresa, os melhores preditores de elevados níveis de exaustão emocional são a perceção de baixos recursos e de elevadas exigências associadas, designadamente, aos horários de trabalho. Em 2025 a situação só pode estar pior.

2. O segundo erro é achar que para se formar um bom médico “são necessárias 300, 450, 600” horas extra. Se é verdade que para a grande maioria dos atos médicos (seja um procedimento cirúrgico, um diagnóstico psiquiátrico ou a análise de uma lâmina de anatomia patológica) o número de atos realizados é relevante para a aquisição de competências e melhoria da qualidade, também é verdade que é suposto que o tempo de formação médica especializada - o famoso “internato”, que dura entre 4 e 6 anos, dependendo da especialidade – seja organizado de forma a que os números necessários para se ser especialista sejam atingidos.

3. Ainda assim, é bom que fique claro que a grande maioria dos médicos em formação fazem, no dia-a-dia, mais horas do que o seu horário preconiza, em muitos casos até às “300, 450, 600”, a maior parte das vezes sem remuneração adicional. Mas não são essas horas, que têm como objetivo melhorar a formação (mas também fazer o trabalho excedentário), que deixam de ser trabalhadas quando há uma recusa em fazer mais do que 150 horas extra por ano. Ao recusarem mais do que 150 horas extra por ano, os médicos – todos, não só os jovens em formação – estão a recusar fazer, na maior parte dos casos, muito mais turnos de urgência do que aqueles que seria razoável - e do que são obrigados a fazer legalmente. Fazem-no, não pelo seu lifestyle, como jocosamente diz Henrique Raposo, mas pela sua própria vida e saúde. E também pela saúde dos doentes que tratam.

4. Talvez seja preciso explicar que o burnout dos médicos aumenta o seu risco de depressão, perturbações de ansiedade e perturbações do sono (que provavelmente o colunista nem considera que sejam bem doenças), mas também de doenças “físicas” como as cardiovasculares ou as respiratórias, bem como a mortalidade precoce. Mas se a saúde dos médicos não lhe parecer suficientemente relevante, talvez também seja importante explicar que, no trabalho de um médico, a excessiva duração dos turnos, os turnos noturnos e a privação de sono, resultam em piores desempenhos cognitivos e maiores probabilidades de erro. Sabendo isto, ser observado pelos médicos “medíocres” que se recusam a fazer mais de 150 horas extra já não parece tão mau, não é, Henrique?

5. O colunista apelida o teto de 150 horas extra de “ridículo”. Mas não será antes ridículo que a classe médica seja a única de toda a função pública que é obrigada por lei a fazer horas extra? Ninguém reflete sobre o facto deste teto legal representar que, há já muito tempo, a organização do trabalho médico no SNS precisa de uma séria reforma?

6. Vale a pena ainda explicar a Henrique Raposo porque é que os médicos agora se recusam a fazer tantas horas extraordinárias quando em gerações anteriores não o faziam, uma vez que toda esta reflexão do colunista sobre o trabalho médico surgiu depois de ler uma reportagem de Joana Ascenção sobre o regresso de 700 médicos da reforma para voltarem a trabalhar no SNS. Segundo se lê em dois artigos de opinião que escreveu na mesma semana do artigo aqui em análise (aqui e aqui), ficou comovido, e daí concluiu que os médicos mais velhos são altruístas e com sentido de missão enquanto os mais novos são egoístas e com “falta de compromisso profissional” (estou a citar). A injustiça deste juízo decorre do facto de se estarem a comparar gerações que trabalharam em circunstâncias tão diferentes, por duas razões principais. Primeiro, a remuneração dos médicos tem sido enormemente desvalorizada ao longo das últimas décadas (incluindo o preço das horas extra!) o que resulta numa perda de poder de compra maior do que em qualquer outra profissão da função pública; havemos de convir que quando não se tem dinheiro para pagar a renda e outra contas, fica difícil que o altruísmo venha ao de cima. Em segundo, as condições de trabalho no SNS pioraram ao longo dos anos e nos últimos tempos, com a saída de profissionais do SNS, há cada vez menos pessoas para mais trabalho. Acresce ainda que a importância que se dá à vida familiar também mudou, e ainda bem. E por isso, hoje, já muito pouca gente admite a ideia de estar 80 horas por semana no hospital, longe da família, dos filhos. Também é cada vez menos frequente que um dos elementos de um casal abdique da sua progressão profissional para que o outro possa fazer 600 horas extraordinárias e ser um médico não medíocre. Talvez o Henrique esteja a sugerir que devamos retroceder algumas décadas para corrigir o desequilíbrio, garantindo médicos mais dedicados e mulheres mais disponíveis. E como a maior parte dos médicos formados no presente são mulheres, talvez o problema esteja também nas licenças de maternidade e nos horários de amamentação. Descansar e cuidar de filhos é um claro obstáculo ao progresso profissional, e o futuro do SNS não pode depender da irresponsabilidade das mães modernas sem compromisso com o trabalho, diria o Henrique.

7. O artigo termina com uma série de perguntas, que mereciam uma resposta fundamentada, mas como este artigo já vai longo, destaco apenas a pérola do costume: “Porquê recusar lutar por um período obrigatório de permanência no SNS de um especialista antes da saída para o estrangeiro?”. Claro que sim Henrique, como os médicos já são os únicos obrigados por lei a fazer horas extra, vamos torná-los também a única profissão com um período de permanência obrigatória a trabalhar para o estado. Tenho a certeza que é assim que se vai conseguir salvar o SNS, até porque não vai passar pela cabeça de nenhum ir para o estrangeiro antes mesmo de ser especialista.

Em suma, este artigo equivocado de Henrique Raposo levanta falsas questões para atirar para cima dos médicos a culpa dos problemas do SNS. Mas é importante que se perceba que os problemas do SNS não existem por causa dos médicos, mas apesar dos médicos, e dos seus esforços para manterem os melhores cuidados possíveis aos seus doentes.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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