Pouco mais de um mês depois da nova Comissão Europeia ter entrado em funções, o jornal Politico foi ver quem, de entre os Comissários, entretanto já tinha reunido com quem. Sem surpresa nem escândalo, descobriu que a maior parte dos Comissários que tinham tido reuniões tinham reunido com gente, empresas, organizações, dos seus próprios países. Naturalmente.
Se é verdade que “toda a política é local”, no caso da União Europeia toda a política é sobretudo nacional. Não admira, por isso, que no levantamento feito pelo jornal online, seis das sete reuniões do Comissário francês tinham sido com interesses franceses, nomeadamente a Renault, a EDF, e a associação empresarial francesa. O mesmo se diga de outro dos vice-presidentes, o italiano Raffaele Fitto. O Comissário austríaco, que trata de Assuntos Internos e Migrações reuniu com representantes empresariais do seu país, pouco provavelmente para falar de migrações. E o comissário irlandês, que trata de democracia, justiça e defesa do consumidor, só tinha tido uma reunião com representantes de interesses e era com os comboios da Irlanda. Provavelmente não sobre Democracia.
Nada disto é estranho, surpreendente ou grave. Pelo contrário. Apesar de os Comissários jurarem não representarem os interesses do seu país a partir do momento em que atravessam as portas do Berlaymont, a sede da Comissão Europeia, estranho, surpreendente e grave seria que se esquecessem de onde vieram, de como o que se decide em Bruxelas tem consequências diferentes nas diferentes partes da União Europeia e de quão importante é ter os 27 diferentes olhares nacionais sobre as políticas e as decisões europeias. Imaginar o contrário, uma Europa feita de Europeus desnacionalizados, é uma ilusão que pode ser, no mínimo, ingénua, no máximo perigosa.
A União Europeia (antes Comunidades Europeias) foi criada para evitar e guerra entre os beligerantes do costume no Continente europeu, e para promover o progresso económico. Mas isso foi em 1957. E se é certo que esses objectivos continuam a ser essenciais (convém não confiar na paz perpétua), a verdade é que entretanto, à medida que alargou e que o tempo passou, os objectivos da União vão sendo outros também. E é assim que chegamos a 2025 e a um mundo completamente novo e não muito admirável. E a UE tem de servir as novas necessidades.
Apesar das notícias estarem repletas de Trump, de Elon Musk e dos (oxalá fossem apenas) dislates que eles dizem, os nossos maiores problemas não são a América, o seu presidente e os seus amigos. Embora sejam, e queiram ser, um enorme problema. O maior desafio vem da China, que não aparece todos os dias nas notícias, cujo presidente não diz coisas chocantes, pelo contrário, mas que tem uma acção adversária no resto do mundo, e na Europa também. Veja-se por onde andou Xi Jinping da última vez que cá veio: em Paris, a ameaçar os franceses, e na Hungria e Sérvia, onde estão dois dos governos mais problemáticos da Europa, a apoiá-los. (E, sim, Trump também é amigo de Orbán, agora Musk é amigo da AfD, e o presidente americano resolveu brincar ao Risco com um território de um país membro da UE, pelo que talvez seja vocalmente mais agressivo que a China, sim.)
Tirando na cabeça de algumas pessoas que vivem e trabalham tanto na bolha europeia que se esquecem de que é feita a União (de Estados), e dos federalistas, que sabem que a União é feita de Estados e querem que deixe de ser, a Europa não existe na cabeça de mais ninguém. Os alemães são europeus, nós somos europeus, os polacos, os finlandeses, os búlgaros são europeus. E todos querem uma União Europeia que seja o espelho da sua ideia de Europa. Mas ninguém está disponível para ser a Europa que os outros imaginam. Nem a Europa que interessa aos outros. Seja à indústria alemã, à economia francesa, à segurança polaca, ao “universalismo” português, e por aí fora. E, no entanto, se a Europa for alguma coisa, e precisa de ser, terá de ser isso tudo.
O tempo que estamos a viver pede mais Europa. Por muito que custe a um atlantista, os Estados Unidos não estão para aqui virados. E como sozinhos não contamos grande coisa, precisamos de ser mais europeus. Mas isso tem de ser feito sem deixarmos de ser cada um dos 27. O que parece muito mais fácil do que é. As tradições austríacas de proximidade com a Rússia, o modelo económico francês, o industrialismo alemão, o medo báltico dos russos, a condição económica portuguesa, e por aqui fora. Tudo isto tem implicações diferentes. Fazer a quadratura deste círculo e ser capaz de ter um sentimento europeu que seja compatível com a pertença e prioridade nacional é o mais difícil, fazê-lo à escala europeia, ao mesmo tempo que crescem os votos nacionalistas e soberanistas, é quase impossível. Mas é indispensável, se queremos ter relevância, autonomia e responsabilidade. Era isso, e não o que Trump diz e o que Xi não diz, que devíamos estar a discutir.