Opinião

Bayrou Noir

Bayrou Noir

Miguel da Câmara Machado

Docente de Direito comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

A verdade é, às vezes, mais inverosímil do que a ficção e as realidades políticas, no ano que passou, foram mais inverosímeis do que tantas séries ou filmes, deixando-nos pasmados perante tweets ou notícias sem saber distinguir a verdade da artificialidade

1) Une France noire: ou um país ingovernável?

Era Camilo Castelo Branco quem, antecipando algumas imagens verdadeiras em contraste com as criadas por artistas mestres de inteligência artificial, escrevia que “a verdade é às vezes mais inverosímil que a ficção”. Analisando o ano de 2024 em França e olhando para 2025 é fácil recordar essa máxima e pensar numa das maiores séries políticas da última década, Baron Noir.

Esta série, com três temporadas, antecipou a realidade que emergiu em 2017 e 2022, aquando da eleição e reeleição de Emmanuel Macron como presidente. O político sem partido, o centrista (como o seu novíssimo Primeiro-Ministro (PM), François Bayrou) que vinha revolucionar o sistema, por dentro, mas pode ter escancarado a porta para os extremos, antecipando-se uma próxima eleição presidencial, em 2027, jogada nas franjas ideológicas de uma França fraturada, quebrada e difícil de compreender.

Em 2025 passarão trinta anos desde que a França teve a sua última eleição realmente bipartida, entre Jacques Chirac, pelos republicanos, e Lionel Jospin, pelos socialistas. Seguir-se-ia a primeira eleição, em 2002, em que Jean-Marie Le Pen, que acaba de partir aos 96 anos, “furaria” o sistema e abriria um espaço para a extrema-direita na segunda volta das eleições presidenciais. Depois de Ségolène Royal perder com Nicolas Sarkozy, que perderia para François Hollande (respetivamente em 2007 e em 2012, duas eleições com segundas voltas de centro-direita vs. centro-esquerda), as eleições de 2017 viram um anterior ministro socialista “virar à direita” e conseguir superar todos na primeira volta, atingindo mais de 2 terços dos votos na segunda vota, contra Marine Le Pen, a filha e herdeira política do fundador da Rassemblement National.

Há quase oito anos, Macron era um “novo Napoleão”, tinha uma maioria forte, sonhos para a França, palavras que até lembravam Obama e vinha com força, energia e ânimo. Ninguém diria que o mesmo homem chegaria a meio do seu segundo mandato com um país desfeito. Na sua mensagem de Ano Novo, a 31 de dezembro de 2024, veio dizer que “eu tenho de reconhecer, esta noite, que a dissolução veio, até ao momento, trazer mais divisões à Assembleia do que soluções para o povo francês (…) eu assumo a responsabilidade total”.

Foi um “ano negro” para o presidente: depois de um resultado desastroso no final da primavera, nas eleições europeias, convocou eleições legislativas de surpresa para o início do verão, mesmo antes dos Jogos Olímpicos que Paris ia acolher e, com esse fundamento (e uns resultados muito confusos, originando um parlamento dividido em três, quase quatro, fações) deixou todos em suspenso até ao outono, quando nomeou Michel Barnier, um diplomata septuagenário centrista, conhecido por representar a União Europeia nas negociações do Brexit com o Reino Unido, pedindo-lhe o impossível: que conciliasse os interesses de todos os gauleses que se guerreavam na Assembleia Nacional, desde os apoiantes de Jean-Luc Mélenchon até aos partidários de Marine Le Pen e do seu jovem “avançado” Jordan Bardella.

Barnier não aguentou e, na véspera de fazer três meses à frente do governo, caiu, durando menos do que um outono, fazendo com que Macron tivesse de, apressadamente, procurar outro septuagenário centrista para liderar um novo governo de difíceis equilíbrios e, assim, chegar a François Bayrou.

2) Le premier centriste: ou o primeiro-ministro “centrista original”?

Há precisamente um ano, em janeiro de 2024, Macron apostava em Gabriel Attal, um jovem com 35 anos, que tinha transitado do partido socialista, em 2016, para o “Renascimento” do presidente eleito em 2017, um liberal, moderado, que bateu vários recordes de juventude: o mais novo Ministro francês, o porta-voz de um governo mais júnior de sempre e, finalmente, o PM mais jovem da História. Quem diria que seria sucedido por dois homens com mais do dobro da sua idade, cada um com 73 anos e um longo historial político?

Bayrou é um veterano da política francesa, com feições que poderiam ter sido concebidas por Uderzo e Goscinny para um livro do Astérix. Vem do sul de França, onde foi presidente da Câmara Municipal de Pau, um dos apoiantes de Macron desde o início, tendo sido ministro e exercido inúmeras funções públicas. No entanto, ao contrário de Barnier, tem o seu próprio partido (o MoDem) e deverá tentar usar o seu novo cargo para ganhar força no cenário político francês. Um dos seus apoiantes e correligionários no parlamento, Philippe Vignier apresenta-o como o “centrista original” e defende que “as forças na Assembleia Nacional vão ser as mesmas, mas ele vai tentar falar com todos e beneficiar de conexões construídas ao longo das últimas décadas”. Não conhecemos o jogo de bastidores, mas sabemos que Macron ia anunciar o PM numa quinta-feira à tarde e adiou o anúncio para o final da manhã de sexta, entre notícias de que estava a repensar a decisão sobre o novo líder do seu governo. Bayrou terá “jogado” com o peso do MoDem na coligação e forçado o presidente a apostar em si. Vale a pena ler a sua apresentação na imprensa internacional…

A carreira de Bayrou conta com mais de cinco décadas, como a de Barnier, mas o novo PM já concorreu à presidência três vezes, foi Ministro da Educação em governos de centro-direita e, num curto período de tempo, foi Ministro da Justiça no primeiro governo de Macron, em 2017.

É um homem calejado pelos vícios da política, desde a autárquica à ministerial, e, nisso, é muito diferente de Barnier, que seria um Barão mais “branco” do que “negro”, no que isso possa simbolizar de vícios e falhas.

3) François au pays noir: ou um governo condenado a falhar?

Na vizinha Bélgica, há 75 anos, Hergé apresentava o seu Tintim no País do Ouro Negro (Tintin au pays de l'or noir, no original em francês), numa aventura que levava o jovem repórter para fora da Europa, quando motores de automóveis começam a explodir pelo mundo inteiro, levando a suspeitas de sabotagem dos combustíveis. Em 2025, o mercado automobilístico é bem diferente, mas tanto a Alemanha como a França vivem uma crise que se poderia equiparar à vivida naquela aventura. Apesar de ser mais fácil imaginar um Obélix a perguntar se os atuais “gauleses estão loucos”, recuperando um bordão desse outro herói de BD.

O país que é agora confiado a Bayrou é um país com uma dívida galopante, uma economia descontrolada, um orçamento por aprovar (foi a razão da queda de Barnier) e o novo Ministro das Finanças, Eric Lombard (vindo diretamente da “Caixa Geral de Depósitos” francesa), tem uma missão quase impossível, num parlamento em que quase todos o querem ver falhar, mesmo muitos dos que jogam na “sua ala”. Já estão todos a planear as eleições presidenciais de 2027. Para já, o primeiro PM de Macron, em 2017, Édouard Philippe (que já se distanciou do presidente) lidera as apostas para ser o próximo presidente e enfrentar uma Marine Le Pen com força crescente de eleição em eleição, e que quererá aproveitar a partida do pai para reforçar a sua posição junto de algum eleitorado que viu nele qualidades especiais anti-sistema.

Em julho, depois das eleições, lideravam as apostas para PM, à esquerda (Olivier Faure ou Marine Tondelier), à direita/republicanos (Xavier Bertrand) ou, ao centro, Gérald Darmanin ou François Bayrou. A última só se concretizou agora, mas não foi uma história esperançosa ou feliz como a de Macron ou mesmo de Attal, há um ano, foi a ascensão de um “Barão” da política francesa.

Tenho muita vontade de traçar paralelismos entre a série, que já deu na RTP2 e está disponível em streaming no MAX, e que é uma obra de arte que rivaliza com as mais premiadas séries americanas, da interpretação à intriga, das manobras ao conhecimento do sistema política, mas acho que o melhor que posso fazer é recomendar que vejam Baron Noir e contemplem esta ficção que atrai pela relação de inverosimilhança ou semelhança que tem com a verdade (e, talvez, o futuro). Quem conseguir, terá ainda, em Portugal, já a partir de 14 de janeiro, uma série deste autor (passada no mesmo universo), chamada La Fièvre, concebida a partir eventos reais, a refletir sobre o impacto das redes sociais e a forma como um post pode atiçar a opinião pública e mudar um país. Era difícil ser mais oportuna. Bom 2025!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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