No momento em que escrevo, circula nas redes sociais a fotografia de uma mulher etíope à venda num mercado de tráfico humano na Líbia. Esta realidade é um reflexo da insegurança que domina o Mediterrâneo e os países do Norte de África que partilham fronteiras marítimas com a Europa. O prolongado conflito e a fragmentação na Líbia têm sido ignorados pela estratégia europeia e a queda de Gaddafi não produziu os resultados desejados. Infelizmente, a unidade e a construção do Estado líbio estão agora nas mãos de diversos atores, que operam sob os tentáculos das intervenções externas. O cenário apresenta semelhanças com outras realidades, como o Afeganistão e o Iraque, ainda que com características próprias. Para além disso, remete-nos para um caso recente: a queda de Assad na Síria, que traz novos desafios para a região do Médio Oriente.
Assistimos ao desmoronamento do sistema Sykes-Picot à la carte europeia, dando lugar a um novo equilíbrio no Oriente, dominado pela Turquia e Israel. Outras potências externas, com papéis secundários, disputam os fragmentos de uma região árabe pulverizada. Neste contexto, a estratégia europeia de segurança exige uma abordagem fundamentada na geografia e na geopolítica atual, evitando uma perspetiva unidimensional centrada exclusivamente no conflito israelo-palestiniano. A transição e a reconstrução da Síria devem ser acompanhadas com um olhar mais cirúrgico, através de uma cooperação estratégica com a Turquia.
Os próximos desenvolvimentos no país são prioritários tanto para Ancara como para a União Europeia, que terão de enfrentar questões cruciais, como a segurança regional, o retorno dos refugiados e a integração dos sírios que optem por permanecer nos países europeus. Paralelamente, o Mediterrâneo representa um ponto de inflexão crítico para ambos, com um impacto ainda mais significativo na segurança da Europa, que enfrenta desafios relacionados com a imigração, questões humanitárias e terrorismo. A União Europeia precisa de assumir um papel de liderança no processo político, afastando-se de visões ideológicas e colaborando de forma pragmática com os atores regionais.
As divisões internas dentro do espaço europeu também se refletem na forma como diferentes estados-membros são tratados, perpetuando diferenças que há muito deveriam ter sido diluídas. A adesão repentina de vários países ao bloco deveria ter sido melhor planeada e coordenada, de modo a evitar as dissonâncias de poder, ritmos e prioridades que hoje se tornam evidentes e comprometem a eficácia da União Europeia no cenário global.
Para continuar a ser um ator político relevante, os líderes europeus precisam de articular e formular uma política independente para a região do Mediterrâneo e do Médio Oriente, especialmente num contexto de mudanças na política externa americana, cujas repercussões serão inevitáveis. A polarização política é prejudicial ao bem-estar europeu e torna ainda mais evidente a falta de coesão na política externa, refletindo a fragilidade do continente em projetar influência e pujança nas relações internacionais. É também necessário que a Europa adote uma auto-consciência crítica sobre o seu passado recente e corrija essas lacunas estratégicas.
Entre 2010 e 2011, os protestos da Primavera Árabe ecoaram pela região com o slogan icónico "ash-sha’b yureed isqaat an-nizaam" ("o povo quer a queda do regime"). Este desideratum por mudança refletiam sociedades que queriam reformas políticas, mas, acima de tudo, inclusão económica, justiça social e governos que respondessem às necessidades do povo. A falha da União Europeia, segundo os autores da obra Democratização contra a Democracia: Como a Política Externa da UE Falha no Médio Oriente, reside na incapacidade da Europa em agir como um ator normativo, o que contribuiu para o fracasso dos seus esforços de promoção da democracia. Baseando-se numa metodologia rigorosa, esta investigação demonstra que as estratégias europeias para o desenvolvimento económico foram mal concebidas, ignorando as preferências das populações por maior justiça social e redução das desigualdades. Como resultado, essas políticas minaram tanto o percurso democrático como o desenvolvimento inclusivo que a Europa almejava.
As consequências dessas falhas políticas transcendem as dinâmicas institucionais, materializando-se em tragédias humanitárias concretas. O tráfico de armas e de seres humanos, as travessias ilegais no Mediterrâneo e todo o sofrimento infligido às pessoas já não podem ser considerados danos colaterais ou problemas alheios que não nos afetam. A desumanização do outro é uma realidade terrível, e Naima Jamal é apenas uma entre as inúmeras vítimas aprisionadas no comércio de escravos, resultado de conflitos que continuam a ser alimentados de forma deliberada.
As paisagens geopolíticas complexas e confusas no Médio Oriente e no Norte de África, marcadas por guerras e conflitos, estão entrelaçadas com intervenções externas e regionais que não conseguiram trazer paz e estabilidade à região. O mea culpa pouco servirá, dado que os interesses permanecem intactos. Ao longo da história, vários líderes tentaram moldar a região, mas os eventos recentes mostram-nos que a natureza do poder é, em última instância, efémera. Tal como os eletrões que orbitam em torno do núcleo do átomo, as relações geopolíticas seguem um circuito dinâmico e volátil onde, inevitavelmente, o espaço entre sujeito e objeto acaba por colapsar.