Opinião

Cisnes disfarçados de elefantes: refletir em 2025

Cisnes disfarçados de elefantes: refletir em 2025

Corina Lozovan

Investigadora e doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

A panaceia do universalismo da mudança de valores e visão política, promovida pelo eurocentrismo, exige uma reflexão profunda. A prioridade dessa transformação deve recair sobre a Europa, reconhecendo que o resto do mundo já tem a sua própria forma de ser, com a qual é essencial aprender a dialogar no contexto desta nova ordem mundial

Nos últimos tempos, as sociedades europeias parecem enfrentar uma realidade que alude a uma distopia literária. Vivemos numa espécie de letargia ad aeternum, em que as desigualdades se agravam, tornando essas sociedades mais desconfiadas, ignóbeis e facilmente manipuláveis. O mais preocupante, porém, é o lento e estrutural desmantelamento da classe média, pilar histórico da estabilidade e coesão social. Esse processo é muitas vezes negligenciado no debate político, apesar dos estudos empíricos em economia e ciências sociais demonstrarem que uma classe média forte é determinante para fomentar a inovação, o empreendedorismo e a prosperidade geral de uma nação. Assim, a sua erosão enfraquece a legitimidade democrática, contribuindo para a polarização política.

Essa fragmentação interna reflete-se numa Europa de múltiplos ritmos e tempos. As questões que atualmente assolam a União Europeia não são cisnes, uma metáfora usada para descrever eventos imprevisíveis. São, antes, elefantes evidentes, visíveis a olho nu, mas que fingimos estar surpreendidos quando se revelam: a ascensão dos extremismos, tanto à direita como à esquerda, a queda vertiginosa da qualidade de vida, a degradação dos sistemas de saúde e educação, os custos inflacionados da habitação e a falta dela, e a ausência de uma política comum de imigração. Estes desafios não são abstrações – são vividos diariamente pelas pessoas que habitam o espaço europeu, confrontando-se com um empobrecimento e insegurança crescente.

Para além disso, vivemos numa era aberrante em que as disparidades proliferam e os discursos belicistas ganham espaço. Desde a pandemia COVID-19, assistimos à normalização da metáfora da guerra no discurso público: o “combate” ao vírus, a “batalha” pela saúde, a “guerra” contra a crise pandémica. Esta retórica, inicialmente apresentada como necessária, evoluiu para uma verdadeira militarização do espaço público, camuflada sob a defesa dos chamados “valores europeus”.

Mas que valores são esses? São os mesmos que permitem que milhares de barcos naufraguem diariamente no Mediterrâneo, com migrantes desesperados por uma chance de sobrevivência? Que valores toleram o sofrimento humano enquanto se erguem muros, tanto físicos quanto ideológicos? Valores que alimentam a guerra e a divisão? A Europa enfrenta não só uma crise política, mas uma crise de consciência e liderança.

A questão premente que todos nós, enquanto portugueses e europeus, devemos colocar é: que tipo de sociedade queremos construir agora, no presente, para assegurar um futuro mais justo e inclusivo? Que modelo de governação desejamos para os nossos países? E, de forma mais abrangente, que tipo de mundo queremos habitar? Um mundo dividido em blocos, onde reina a opacidade, sem intercâmbios culturais, ideias ou inovações a fluir? Estas escolhas são fundamentais para determinar o papel que a Europa desempenhará num futuro cada vez mais próximo.


No cenário global, o papel da Europa está em declínio, à medida que as potências médias emergem e o Sul Global ganha outro protagonismo. Para se adaptar a esta nova realidade multipolar, a Europa deve repensar a sua diplomacia, abandonando as práticas e o tom paternalista e condescendente em favor de parcerias baseadas na equidade e no respeito mútuo, reconhecendo as aspirações legítimas de outros atores internacionais.

Paradoxalmente, enquanto outros países fora do continente europeu investem em metas claras de modernização e inovação, a Europa parece paralisada por divisões internas e pela ausência de uma visão compartilhada. A única estratégia que ecoa pelos corredores políticos parece ser: “preparem-se para adotar uma mentalidade de guerra”. Enquanto outros lugares aspiram ao bem-estar e a prosperidade, ao avanço tecnológico e à valorização do seu património cultural, aqui assistimos a uma perigosa manipulação e estagnação.

Neste contexto, a cultura poderá desempenhar um papel fulcral para o renascimento europeu. José Tolentino Mendonça, num dos seus discursos, destacou a sua relevância para a construção da paz em tempos de crise e escassez. A cultura é uma âncora que nos pode salvar da ignorância e do colapso. Mais do que isso, a cultura tem o poder de ser uma ponte para o entendimento mútuo, promovendo o diálogo, o despertar intelectual e a humildade nas relações humanas e sociais.

Exemplos históricos, como o do grande pianista americano Van Cliburn, que conquistou o público soviético e transcendeu as fronteiras ideológicas durante a Guerra Fria, ilustram como a cultura pode unir o que a política separa. Hoje, mais do que nunca, precisamos da cultura como uma linguagem de paz e esperança.

O percurso da pequena Yasmine é um símbolo dessa esperança. Perdida no Mediterrâneo, agarrada a câmaras de ar, a sua sobrevivência reflete a resiliência humana perante a adversidade e a aspiração por uma vida melhor. E nós, europeus, o que queremos, afinal?

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