Opinião

As Causas. Histórias de fracassos

No meu penúltimo programa irei dar especial relevo aos 9 anos de mandato do Presidente da República, que acompanhei.

Também voltarei ao tema da trágica situação da literacia dos portugueses, que tantas vezes abordei e que agora um relatório da OCDE revelou com resultados muito piores do que alguma vez imaginara, mesmo nos momentos mais pessimistas que possa ter tido.

MARCELO: SUPER-HOMEM E TIO PATINHAS

Marcelo Rebelo de Sousa - qual “papagaio de pirata”, como dizem no Brasil – é o comentador que espreita por trás do ombro presidencial.

Ele foi um tema incontornável nas “Causas” durante estes 6 anos e também durante o período de quase dois anos (finais de 2016 a setembro de 2018) em que tive um programa na TVI que, quando me afastei (aí com razões que nada têm a ver com as atuais), era liderante no comentário político em canal aberto. 

As razões são óbvias: em primeiro lugar, o Presidente da República em regime semi-presidencialista tem existência política forte; e a estratégia de Marcelo Rebelo de Sousa, de tudo comentar numa base que chegou a ser várias vezes ao dia. Era inevitável a omnipresença.

Mas, além disso, e em segundo lugar, Marcelo tem uma inteligência muito acima da nossa média, pobres mortais, adora vestir-se de Sibila (oráculo), quer intervir para forçar a realidade como fez ao longo de décadas, é eticamente decente, e falando muito e sendo divertido, é adorado pelos jornalistas. Era irresistível para a media.

Finalmente, e nisso gostaria de me centrar (de novo) hoje, pelas suas qualidades tinha todas as condições para poder ser o mais notável presidente da 3ª República, marcando a linha do futuro e - usando o seu enorme prestígio, popularidade e empatia – poderia ter promovido reformas que ele mostrou várias vezes saber que eram essenciais. Era desejável para Portugal.

Infelizmente os seus 9 anos em Belém (e o que falta não será diferente) saldaram-se por um fracasso – se medido pelas expetativas que nele se criaram – ou por uma mediana banalidade, se visto por cínicos ou pelos que pensaram desde o princípio que Marcelo não conseguiria mudar aos 67 anos quando lhe puseram ao peito a “Banda das Três Ordens” (as Grã-Cruzes das Antigas Ordens Militares de Cristo, de Avis e de Sant’Iago da Espada) que é apanágio presidencial como desde D. Maria 1ª foi apanágio régio.

Para mim foi rapidamente evidente (cedo demais para muitos amigos que acabaram depois muito mais críticos de que eu…) que era isso que acabaria por acontecer, apesar de – mea culpa…- eu ter depositado esperanças fortes que ele – Homem de muitas qualidades – seria capaz de marcar Portugal.

Por isso sofri uma enorme de desilusão, que tem de surgir quando vemos desbaratar virtudes, talentos e possibilidades excecionais.

Por isso também, mais de uma vez o comparei a dois personagens de banda desenhada da minha infância:

  1. O Super-Homem, que tinha poderes para salvar o Mundo, mas se especializou a colocar o dedo para tapar inundações em prédios ou a salvar velhinhas de serem assaltadas, e 
  2. O Tio Patinhas, o ultramilionário que tinha uma arranha-céus cheio de moedas de ouro, em que todos os dias mergulhava, mas que nunca investiu esses talentos, que se limitava a gozar e a desfrutar com objetivo egoísmo.

Os portugueses acabaram por perceber, e isso, por exemplo, fica evidente pela evolução das sondagens.

O FRACASSO DE MARCELO

É verdade que as sondagens não são um indicador valorizado por todos, mas Marcelo deu-lhes sempre atenção e valor muito elevado, quando era comentador e desde que nos preside.

Então, vejamos: em julho de 2019, meses depois de eu ter começado este programa, segundo uma sondagem da Pitagórica para o Jornal de Notícias e a TSF, 92% dos inquiridos faziam uma avaliação positiva da ação do presidente da República.

Passados 5 anos, em junho de 2024, segundo uma sondagem da Aximage para o DN, JN e TSF, a avaliação positiva baixou para 32% e a negativa chegou a 60%.

Dizia Vitor Cunha Rego que é contra o vento que se levanta voo. Ou seja, abençoada baixa de popularidade se ela resultasse de o Tio Patinhas ter investido talentos que daqui a anos com rendimento permitiriam refazer a inicial imagem positiva. 

Mas, infelizmente, entre 2019 e 2024 (e realmente desde 2016) mesmo os mais atentos dos especialistas em “marcelologia” terão enorme dificuldade em encontrar alguma coisa relevante que ele tenha conseguido que fosse feito ou evitado que ocorresse.

Assim nada conseguiu que pudesse apagar o brilho – fátuo – das centenas de milhares de “selfies” e imagens icónicas que nos fazem sorrir, como o roubo de batatas fritas do prato de uma senhora pela janela de um restaurante numa feira. E será isto que resistirá à erosão do tempo.

Mas pior do que a falta de revelação de sucessos, será a realidade dos insucessos que – com o seu constante e intrusivo protagonismo – não pode enjeitar:

  1. Dissolveu duas vezes a Assembleia da República e só não serão três porque no final de 2025 já não o pode fazer; mas, pior do que isso, “gerou” o caldo de cultura delas e não gostou de nenhum dos resultados– foram dissoluções e desilusões;
  2. Recebeu o País com 36 deputados de Esquerda Radical (que apesar disso tinham decidido entrar na “geringonça”, diminuindo assim e muito o seu radicalismo em termos práticos), agora vai devolvê-lo com 63 deputados de Esquerda (13) e Direita (50), todos mais radicais, e vai deixar-nos no meio de uma provável crise política a prazo que mais afetará o seu legado – ou seja aumentou 100% os radicais e isso pode ainda piorar;
  3. Tal como estão as coisas, tudo indica que lhe sucederá um militar emproado, que se julga capaz de ombrear com D. João II, e que é tudo o que Marcelo gostaria que não ocorresse, sobretudo por poder significar que no fundo os portugueses se fartaram do modo como ele exerceu o seu mandato.

Nada disto ele queria viver, honra lhe seja, pelo que devemos assumir que terá tentado evitar esta evolução para um país mais radicalizado e menos governável. 

Ou seja, e tenho a certeza que sofre muito com isso, mediu mal a realidade, analisou pior as evoluções, geriu erraticamente as suas influências, falhou na descrispação do país com o qual incansavelmente se fez fotografar no meio de sorrisos.

Ou seja, não se pode concluir de outro modo: Marcelo fracassou como Presidente da República.

O que só me lembra a Parábola dos Talentos, que (em Mateus 25:14–30) conclui assim em relação ao servo que não pôs a render o talento que o Senhor lhe deu: “tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem os dez talentos; porque a todo o que tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem, ser-lhe-á tirado. Ao servo inútil, porém, lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá o choro e o ranger de dentes”.

Os tempos são outros, mas o desânimo não deve ser diferente.

NOSTALGIA, DESÂNIMO, AGITAÇÃO

Não admira, pois, que agora Marcelo revele uma espécie de regressão nostálgica para um inventado paraíso perdido, um desânimo indisfarçável e de novo uma agitação que nos últimos meses desaparecera (a ponto de muitos pensarem que estava doente).

Vejamos, rapidamente, em concreto:

  1. A frase dirigida a António Costa há dias em cerimónia pública, "um dia reconhecerá que éramos felizes e não sabíamos" – repescada de Bob Marley – é passível de várias interpretações, mas todas elas apelam para um fenómeno regressivo, que seguramente não nos assalta quando estamos felizes e otimistas;
  2. A afirmação há dias de que não vai ter "nenhumas saudades" de ter sido Presidente e a promessa de "não falar mais de política" quando deixar Belém, tem muito de visão depressiva e revela a sua frustração quanto ao que vai ficar daquilo que (não) fez;
  3. A mais do que evidente abertura de uma fase de crítica aberta ao Governo, e só quem não o conheça que se iluda: é de novo a ânsia desmesurada de popularidade e a irritação inafastável com um Primeiro-Ministro menos sonso que o anterior, revelando um Marcelo carente de afeto, que preferia ser manipulado com proximidade do que respeitado com distância.

O frenesim que o (re)tomou, soa agora demasiado risível como, com a inclemência dos humoristas, Araújo Pereira nos mostrou no passado domingo.

Mas esta semana e na próxima, na hora da despedida, há mais do que Marcelo, infelizmente.

EDUCAÇÃO: RETRATO DE 50 ANOS DE FRACASSO

Ao longo de 9 anos exprimi acrescidas preocupações com a péssima forma como a Educação foi tratada no regime democrático, quando se esperaria o contrário. 

Como se isso não chegasse, na passada semana foi divulgado um estudo (“Survey of Adult Skills” ou “Inquérito às Competências dos Adultos de 2023”) feito sob os auspícios da OCDE (que reúne os cem países mais ricos) e que abrangeu uma amostragem de 160 000 pessoas (que têm entre 16 e 65 anos) em 31 países.

O estudo é feito de 10 em 10 anos e Portugal participou pela primeira vez. O resultado é de um modo geral assustador (o “Economist” titula “Are adults forgetting how to read?”), mas Portugal surge com um retrato mais horrível do que todos, com exceção do Chile.

Basicamente, 

  1. 42% dos portugueses com 16 a 65 anos só conseguem compreender “textos curtos e listas organizadas”,
  2. Mais de 30% só conseguem resolver aritmética básica, e
  3. Os adultos com ensino superior em Portugal, obtiveram resultados inferiores aos dos adultos apenas com ensino secundário na Finlândia.

Tudo isto é um travão permanente ao desenvolvimento político, económico e social futuro.

Mas gostaria de realçar que é um atestado de fracasso para comemorar os 50 anos do 25 de Abril.

Realmente, creio que ninguém reparou: os mais velhos envolvidos no estudo (com 65 anos) tinham 15 anos (a idade dos mais novos agora estudados é de 16 anos) no final do Estado Novo, pelo que todo o universo estudado é constituído por “filhos da Democracia” e não por “filhos da Ditadura”.

As causas e as culpas seguramente são muitas, mas isso não serve de consolo. 

E que pena, por exemplo, que um Presidente da República com cultura, inteligência, empatia, poder, influência, capacidade excecional de comunicar – que me lembre – nada tenha feito para enfrentar este flagelo.

O ELOGIO 

Ao longo de várias semanas estigmatizei o facto de nada estar previsto para comemorar os 500 anos da morte de Vasco da Gama. 

O anterior governo, por certo deliberadamente, esquecera-se disso, assim como com desinteresse deixara pendurada a comemoração do nascimento de Camões.

Critiquei a inércia que se manteve, mas agora com gosto elogio a Ministra da Cultura, que anunciou em finais de novembro o que iria ser feito (e tem qualidade), revelando que o atual Governo afinal não tem vergonha da nossa História, como parece ser o caso do anterior.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Nesta penúltima semana do meu programa os dois livros que sugiro têm de comum algo que não se perceberá à primeira vista:

  1. Vasco da Gama – A carreira e a lenda do maior navegador de sempre” (Desassossego), reedição com novo prefácio do autor, o historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, que originalmente referia apenas “a carreira e a lenda”, e dá uma visão indocêntrica e não panegírica do “forte capitão” em que Camões personificou a viagem dos portugueses que é afinal “os Lusíadas”, e
  2. Prova de Vida – Retratos do Portugal Contemporâneo” (Tinta da China), do Professor António Araújo, que relata com uma visão antropológica e tão inclemente como empática das vidas de personalidades da cultura ou da curiosidade populares que caíram no esquecimento.

Vasco da Gama morreu há 500 anos. Sem conhecermos a saga de Gama (que iniciou a “Era Gâmica” da História Universal) nunca perceberemos o meio milénio da nossa História que ele abriu.

As dezenas de personalidades menores que António Araújo libertou da lei da morte (com crónicas durante 3 anos no DN e agora em livro), elas também ajudam a perceber melhor quem (também) somos e por meio de um livro muitíssimo bem escrito.

Excelentes leituras – temas tão diferentes, como as duas faces de uma moeda – para o período natalício.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA 

Se a demagogia e a insensatez política pagassem imposto, Marta Temido resolveria o problema do défice que o candidato presidencial com chapéu de Governador do Banco Portugal nos anuncia como leit-motiv da sua candidatura. 

A revelação de que há um negócio de trazer de todo o mundo grávidas e pessoas com tratamentos caros para serem atendidos pelo SNS nada tem a ver com imigrantes irregulares (mas que trabalham em Portugal e por isso há dados sobre eles) ou turistas.

Mas Temido, sem distinguir, afirmou no Público que o projeto da AD para travar a “utilização abusiva” do SNS é o “triunfo do populismo” e titula “Todo o país ganha com o acesso dos migrantes à saúde”. Ou seja, deve deixar-se o negócio prosperar.

As perguntas: não percebe que a demagogia é uma forma de populismo? Não percebe que não enfrentar este tipo de problemas é a forma de ajudar os radicais? Ou tem ainda peso na consciência?

A LOUCURA MANSA 

O tiro no pé de um militar deve ser considerado uma aselhice grave e é sem dúvida uma loucura mansa por excelência.

Na última Revista da Armada, Gouveia e Melo surge a mostrar a D. João II – o “Príncipe Perfeito” – as maravilhas que fez em 3 anos como Chefe de Estado Maior.

O ridículo por vezes mata, mas pelo menos não podia começar pior a campanha do Almirante a caminho de Belém.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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