A queda dos líderes no Médio Oriente nos últimos anos pode ser considerada histórica. Em 2001, a intervenção americana desmantelou o regime de Saddam Hussein no Iraque, e mais tarde, durante a Primavera Árabe, assistiu-se em direto à deposição de Ben Ali na Tunísia, Mubarak no Egíto, Gaddafi na Líbia, Saleh no Iémen e hoje, Assad na Síria. Este colapso político, desencadeado através de manifestações populares, insurgências armadas ou intervenções militares externas, reflete as fragilidades do autoritarismo, mas também as profundas tensões subjacentes às configurações sociopolíticas da região. A anatomia deste processo revela a dinâmica de poder e governação numa região que tem sido, par excellence, o epicentro da geopolítica global, marcada pela instabilidade institucional, rivalidades sectárias e a ingerência de interesses exógenos.
O futuro da Síria, para já, está nas mãos de HTS, liderado por Ahmed Hussein al-Shar'a ou nom de guerre, Abu Mohamed al-Jolani. A transição de poder pressupõe a existência de um Estado-nação, condição sine qua non, para além da soberania nacional e territorial. Porém, o país enfrenta inúmeros desafios para se tornar uma nação com uma autoridade centralizada e instituições legítimas, incluindo a necessidade de um governo inclusivo, reconhecido tanto pelos cidadãos como pelas organizações internacionais.
É importante ultrapassar as análises binárias e simplistas que colocam a Rússia contra os Estados Unidos e vis-à-vis Irão, os alauitas em oposição aos sunitas ou xiitas, e islamistas contra secularistas, sendo necessária uma abordagem pragmática, algo que poucos compreendem. Isto aplica-se não só às análises relativas à Síria, mas também ao Médio Oriente.
Por um lado, há quem antecipe um cenário sírio semelhante aos modelos líbio, afegão ou iraquiano, em que a instabilidade e a possibilidade de conflitos entre vários grupos num terreno fértil para ideologias extremistas podem instigar uma nova luta pelo poder interno. Este quadro torna-se ainda mais preocupante devido à intervenção de potências externas no país. Contudo, o pragmatismo político tende a prevalecer, dado que a estabilidade na Síria é considerada essencial para a região por todos os atores, incluindo Israel, devido à presença do Hezbollah.
Em contrapartida, o cenário de uma transição de insurgência para governação será um percurso não linear, no qual diversas esferas de influência poderão emergir dentro do país. O desafio do HTS será superar o seu passado de combates, já que muitos países ainda o classificam como organização terrorista. A oposição, que poderia contribuir para a transição, ainda permanece no exílio e deve regressar. O primeiro-ministro, um dos representantes remanescentes do regime, declarou que a liderança do país será escolhida pelo povo, o que reflete uma tentativa de diálogo com as forças insurgentes.
Neste sentido, os argumentos de que a Síria estará em maior perigo agora são desnecessários, pois ninguém melhor do que os próprios sírios sabem o que viveram e aquilo que enfrentaram na luta. Não há ingenuidade quanto aos riscos da mudança e às dificuldades da transição política. Esta queda é simbólica para a maioria das pessoas. Após décadas de opressão, traumas e aprisionamento – basta recordar os prisioneiros políticos da prisão de Sednaya – este momento é celebrado, embora com preocupação devido à incerteza que se vislumbra.
Por fim, a consolidação do poder na conjuntura atual depende de múltiplas variáveis que também afetam a região. A Síria é um labirinto de interesses e hostilidades, e a sua raison d'être desperta grande atenção. Neste teatro operacional, as potências envolvidas têm sido pragmáticas, garantindo a sua presença contínua no país, mesmo com a nova transição política.
A Turquia destaca-se como um grande ator regional, solidificando influência e firmando acordos no Médio Oriente. No Líbano, o Hezbollah, apoiado pelo Irão, perde estratégia face à Síria, enquanto que a incerteza permanece no Iraque, onde a influência iraniana continua. Nas fronteiras com Israel, as fações do HTS declararam que não pretendem alimentar mais instabilidade. Curiosamente, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão declarou respeitar o futuro da Síria, que pertence aos seus cidadãos.
Assistimos ao colapso da dinastia Assad e, simultaneamente, à dissolução das constelações e ideologias de poder, legados da Guerra Fria na região, que outrora pareciam imutáveis. O futuro do Médio Oriente passa por novas constelações de influência, que desta vez aparentam estar mais unidas, quiçá avançando em direção à luz, e não ao abismo.