Os satélites de Putin
A Geórgia, a Moldávia, a Roménia: o “estrangeiro próximo” que a Rússia quer transformar num quintal político
Investigadora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica
A Geórgia, a Moldávia, a Roménia: o “estrangeiro próximo” que a Rússia quer transformar num quintal político
Para mal dos pecados de um jovem membro do KGB na República Democrática Alemã do final da década de 1980, o colapso do bloco soviético encetou na antiga Europa de Leste uma deriva sociopolítica inequivocamente europeísta e pró-Ocidental. Volvidos mais de 30 anos, esse jovem, num ditador nacionalista tornado, toma hoje a dianteira de um processo de revisão histórica e geográfica daquele tempo que ele recorda nostalgicamente e cuja implosão apelida como tendo sido a maior catástrofe do século XX.
Putin quis e quer manter na órbita da Rússia por ele liderada um conjunto de satélites que, pelo menos na esfera da galáxia mental anacrónica do líder russo, não estão dotados de ferramentas ou maturidade para viver fora do universo – económico, político e cultural – da mãe-Rússia. Esta visão surge nominalmente consagrada no conceito de “estrangeiro próximo” – um termo pelo Kremlin arranjado para agrupar as antigas repúblicas soviéticas no dossiê da política externa russa. Apesar dos objetivos formais desta distinção, ela mais não desmascara se não a autopresunção de que a Rússia pode e deve continuar a interferir nas opções destes, agora, Estados soberanos e independentes.
Por razões de várias ordens – interesses económicos e/ou energéticos, proteção política, entre outros – alguns destes países parecem mais confortáveis em manter alguma forma de cordão umbilical com Moscovo. Sem surpresa, também é neste último subgrupo de países que as lideranças políticas parecem alinhar-se mais com a da Rússia, que é como quem diz com a de Putin. Pense-se nos casos da Bielorrússia ou do Cazaquistão.
A maioria das antigas repúblicas soviéticas, porém, não só não está politicamente alinhada com a liderança russa, como não está social ou culturalmente confortável com a pertença a um universo de países “diferentes” na leitura geopolítica de Putin. Pelos motivos óbvios, a Ucrânia é o caso mais flagrante da deriva europeísta que aqui começou por ser mencionada. Neste caso – o ucraniano – não se trata apenas de uma opção sociopolítica ou de um desalinhamento face aos desejos e pretensões de Putin. Trata-se da sobrevivência de um povo. Trata-se de uma guerra quente travada entre dois blocos antagónicos (novamente) em guerra fria.
Outros casos, porventura menos flagrantes, estão a brotar numa Europa de gerações a quem a guerra russo-ucraniana ofereceu a prova provada de que, agora, o antigo e impotente jovem do KGB tem poder, armas e vontade de reescrever um capítulo da História por Mikhail Gorbatchov encerrado.
O imperialismo putinista tomou os seus contornos mais palpáveis a partir de fevereiro de 2022, no Donbass (em rigor, tomou-os na Crimeia, em 2014). Mas as sombras deste imperialismo estão a estender-se para lá destes territórios, numa cruzada de propaganda, interesses, desinformação e ingerência contra a qual as sociedades civis Leste europeias estão a bater-se.
O anúncio da suspensão das negociações para a adesão da Geórgia à União Europeia colocou Tbilisi em efervescência social, numa onda de protestos diários cujo impacto já foi comparado ao da Revolução Euromaidan, de 2013, na Ucrânia. As aspirações europeístas dos georgianos têm recebido o descrédito político do governo e a resposta musculada aos tumultos recentes confirma esse desprezo pela causa. O partido no poder – Sonho Georgiano – terá vencido as eleições de outubro deste ano, desencadeando um “movimento de resistência”, cujo principal rosto é o da Presidente do país, Salome Zurabishvili. O movimento cívico reúne ainda o apoio da oposição no Parlamento, que declara ilegítimo este governo, acusando-o de servir os interesses moscovitas no país.
O estatuto de país candidato foi concedido pela UE à Geórgia no final de 2023, mas o retrocesso democrático do país desde então a esta parte ofereceu a Bruxelas razões para abrandar esse processo. A onda de protestos na capital georgiana acontece justamente para travar o afastamento do caminho e dos valores ocidentais, por oposição a uma aproximação a Moscovo – patente, por exemplo, na recusa da liderança do Sonho Georgiano corroborar com as sanções impostas pela UE à Rússia (o que é bastante sugestivo).
A oligarquização de forças partidárias em ascensão ou dos próprios governos nos países do chamado estrangeiro próximo (mas não só, como veremos adiante) é uma das armas silenciosas na guerra fria em curso entre a Rússia e o Ocidente. Como acontecia no antigo bloco soviético, o controlo e manutenção dos interesses da Rússia fora do espaço russo faz-se por via da compra de governantes, grupos e regimes inteiros, cujo interesse não é o nacional, mas o pessoal. No caso do partido Sonho Georgiano, sabe-se que o seu fundador, o bilionário Bidzina Ivanishvili, tem fortes ligações à Rússia, onde, de resto, estaciona parte da sua fortuna desde os anos 1990. Ao mesmo tempo, e em troca, espera-se que aumentem os incentivos e regalias socioeconómicos oferecidos por Moscovo a estes países, como acontece com o caso concreto da Geórgia, cujos cidadãos gozam agora do direito ao trabalho na Rússia.
Na Moldávia, a clarividência dos cidadãos no que à deriva europeísta concerne não está tão apurada quanto na Geórgia. A Moldávia é um dos países mais pobres da Europa, onde é fácil comprar o voto e a opinião das pessoas por um valor monetário pouco significativo. Em algumas zonas do país, vive-se numa espécie de realidade russa fora da Rússia, onde, por exemplo, a primeira língua falada pela maior parte das pessoas é o russo. Entre outras implicações deste universo paralelo, uma das principais é a chegada de informação manipulada, como outra das armas silenciosas ao serviço do Kremlin, aos moldavos que habitam estas zonas, geralmente rurais.
No passado mês de outubro, o país foi a eleições e a candidata mais favorável à integração europeia, Maia Sandu, venceu. Ainda assim, o momento eleitoral não escapou às denúncias de interferência da Rússia, sobretudo na segunda volta. O candidato pró-Rússia, Alexandr Stoianoglo, conseguiu 45% dos votos, contra os 55% da vitória de Sandu. Relatos de transportes coletivos de eleitores a partir da Transnístria (região separatista pró-Rússia na Moldávia) levaram as autoridades a crer num esquema de compra de votos por parte da Rússia – o que já tinha acontecido na primeira volta das eleições. Noutras capitais europeias, mas não só, surgiram, por exemplo, ameaças de bomba nos locais onde os cidadãos imigrantes moldavos poderiam exercer o direito ao voto, numa lógica evidente de boicote ao voto de uma fatia considerável de eleitores pró-Ocidente.
O resultado das eleições deste ano provou que, pelo menos para já, a Rússia não conseguiu instalar um governo-fantasma em Chisinau e a Moldávia escapou ao estatuto de um dos satélites de Putin. Por certo, porém, Moscovo não vai desistir de explorar esta oportunidade, sabendo, sobretudo, que a vitória de Sandu acontece numa altura de discórdia e divisões sociopolíticas na Moldávia.
A Roménia não é uma antiga república soviética, mas é um dos antigos Estados satelizados pela União Soviética na Europa de Leste. Ainda assim, na prática, muitas das lembranças dos romenos que já eram nascidos no tempo soviético correspondem às dos que viviam na própria União Soviética: do domínio castrador do regime de Nicolau Ceausescu sobre a sociedade à falta de acesso a um conjunto vasto de bens e serviços. Esta memória histórica é o denominador comum entre romenos, moldavos, georgianos (e outros!) Todos temem ser engolidos pela galáxia que o líder russo quer (re)construir.
A prova disso foi a ascensão algo inusitada do candidato de extrema-direita às eleições do passado dia 1, Calin Georgescu, alegadamente apoiado pelo Kremlin numa ampla campanha online de promoção da sua candidatura – que acabaria mesmo por vencer a primeira volta do momento eleitoral. As suspeitas de interferência da Rússia nesta campanha conduziram o Tribunal Constitucional romeno a anular a validade do ato eleitoral, cuja segunda volta se realizaria a 8 de dezembro.
Para a sociedade civil na Roménia, estas são notícias agridoces: se, por um lado, as instituições provam estar a funcionar no sentido de garantir a legalidade e transparência do processo e etapas inerentes a uma nova eleição, por outro, fica clara a tentativa russa de deitar a mão a mais uma porção daquele que Putin julga ser o seu quintal político. Para o Kremlin, todavia, alimentar a desconfiança popular no momento eleitoral é uma vantagem promissora. Escassos 30 dias antes da primeira volta das eleições, eram poucos os romenos que conheciam a figura de Georgescu ou o seu projeto político, que se tornou viral na plataforma TikTok, alegadamente com um “empurrão” do vizinho russo. Agarrar as gerações mais novas através destas campanhas à la anos 2020 e, ao mesmo tempo, fazer com que as mais velhas se desacreditem face a estes processos é uma win-win situation, tanto para Putin, como para os seus homens-satélite, na Roménia ou noutro país qualquer.
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