Profissionaliza a tua paixão
A paixão não muda nem morre, é sempre a mesma, e o sacrifício é quase sempre o motor da criação. Procurar a beleza, com paixão e sacrifício
Escritora, poeta e dramaturga
A paixão não muda nem morre, é sempre a mesma, e o sacrifício é quase sempre o motor da criação. Procurar a beleza, com paixão e sacrifício
Há um par de semanas, numa conversa pública sobre o tema “Tradição e Contemporaneidade” entre dois brilhantes Tavares, o Martim Sousa Tavares e o Gonçalo M. Tavares, um deles, não me lembro qual, disse o seguinte: “Não profissionalizes a tua paixão”, obviamente referindo-se ao domínio das artes e ao ofício do artista. Recordo-me que o Martim Sousa Tavares, ainda nesse contexto, partilhou por que motivo tinha deixado a prática do instrumento e optado por seguir estudos para maestro: por ter noção do sacrifício que requer o trabalho diário do músico, que pouco ou nenhum tempo lhe sobra para outras actividades que enriqueceriam certamente o seu ofício, como viajar pelo mundo, ver outras obras de arte, experienciar outros contextos, como pode fazer, por exemplo, um maestro que não tem de dedicar um sem fim de horas diárias à prática do instrumento.
Fiquei a pensar no ofício do escritor ou de qualquer outro artista, nomeadamente os das artes de palco, e em como o sacrifício regular, quase sempre diário, está implícito na prática e evolução da obra. Fiquei a pensar em como a ideia de sacrifício (muitas vezes físico, como as costas do escritor ou os pés do bailarino clássico, já para não falar da extenuante tarefa mental, nomeadamente a concentração) e a paixão andam de mãos dadas no que concerne à prática artística. Se formos ver a etimologia da palavra paixão — que vem do latim «passione», «acto de suportar, de sofrer; a paixão de Jesus Cristo; sofrimento do corpo; doença; afecção da alma, paixão; acidente; perturbação na natureza» — percebemos que, de acordo com a origem da própria palavra, fará sentido falar-se de profissionalizar a paixão. Para um artista, o sofrimento do corpo ou a afecção da alma são consequências inevitáveis, e muitas vezes a origem da acção criadora. Os artistas são por excelência os profissionais do sacrifício, até por motivos económicos (tema que não desenvolverei neste texto).
É claro que entendo o sentido que um dos dois Tavares quis dar à sua afirmação, "Não profissionalizes a tua paixão", como que alertando “não lhe percas o gosto, a chama que a alimenta”. Mas e se a chama da criação artística surgir precisamente porque existe um sacrifício regular ou diário? E se a chama do artista se alimentar de abdicar muitas vezes da vida pessoal ou do lazer, fechando-o num círculo de fogo quase obsessivo? E se a chama também se alimentar daquilo que faz doer as costas e do atrevimento de entrarmos por caminhos mais escuros? Penso que é precisamente aí que reside a durabilidade da paixão no artista — a sua resistência à rotina, ao cansaço, a mais uma desilusão. Porque ser artista é talvez das poucas missões sem missão, no sentido da utilidade, apenas movida pela paixão e pelo sacrifício, muitas vezes de ordem física, prática, que exige paciência, solidão e orgulho. Porque o sacrifício, no sentido da paixão e da criação artística, é também uma oferenda ao outro.
Recordo Salinger, por exemplo, a vida e a obra. Salinger abdicou de uma vida urbana, mundana, familiar, social, para se dedicar por inteiro à escrita. Sabemos que vinha de uma narrativa traumatizante da sua experiência enquanto soldado na Segunda Guerra Mundial.[1] Ainda assim, e talvez sobretudo por isso, só alguém apaixonado, no sentido essencial do termo, poderia fazê-lo da forma quase sagrada como o fez. A ideia de sacrifício e paixão fazem de Salinger (e de muitos outros) um profissional que desempenha de modo digno, com seriedade e rigor, uma determinada actividade, neste caso, artística.
Não conheço um único escritor sem problemas nas costas ou nas mãos. Acredito que os pianistas sofrerão do mesmo mal, para não falar dos bailarinos que têm mazelas dolorosas para a vida inteira. Há uns anos percebi que tinha uma hérnia discal na zona lombar, até à data (além do dinheiro que ganho com alguns textos) foi a única coisa que ganhei com a escrita. Não me arrependo de ter profissionalizado a minha paixão, dedico-lhe todo o tempo que consigo (entre o trabalho na universidade e noutras escolas de artes, que preciso para sustentar a minha filha e a casa). A paixão por uma prática artística não se esgota como o corpo de um amante a quem já conhecemos os cheiros e os humores. A paixão por um objecto artístico em criação, ou mesmo em modo de repetição, penso na dança, no teatro e na música, faz-se para atingir o ponto máximo de beleza e para, depois de esgotado, passarmos a outro objecto, outro amante. Porém, a paixão não muda nem morre, é sempre a mesma, e o sacrifício é quase sempre o motor da criação. Procurar a beleza, com paixão e sacrifício. E ainda há quem pense que é fácil ser artista profissional.
[1]https://brasil.elpais.com/brasil/2014/01/29/cultura/1391026615_236766.html?outputType=amp
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