Opinião

Alepo e o conflito na Síria

Alepo e o conflito na Síria

Corina Lozovan

Investigadora e doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Alepo vive novamente um déjà vu bélico. Desta vez, a luta na Síria poderá levar a uma nova repartição política do país, com repercussões regionais

A propósito das constelações de poder, na semana passada debrucei-me sobre o realinhamento do Médio Oriente e nas várias crises geopolíticas que podem surgir. Hoje, temos a Síria na bruma dos dias. Alepo é um testemunho de séculos de história e civilizações, tendo-se tornado um símbolo da luta pela reconstrução da Síria, após a devastação causada pela guerra. A cidade também representa um microcosmo da composição sectária, com uma população de diversas etnias e religiões, incluindo árabes sunitas, curdos, alauitas e cristãos, o que reflete a divisão e tensão entre diferentes grupos dentro do país. A sua localização estratégica, onde mais de cem bases militares ainda permanecem, desperta interesse para vários atores internos e externos.

Até 2016, o conflito sírio, tal como as guerras do Afeganistão e do Iraque, tornou-se um destino para os combatentes jihadistas de várias partes do mundo. Quanto a Alepo, o Presidente Bashar al-Assad levou mais de quatro anos para reconquistar a cidade, contando com o apoio do Irão, do Iraque, das milícias libanesas xiitas e das operações aéreas da Rússia. Após tomar a cidade, Assad teve oito anos para reconstruir as suas capacidades militares, mas, em vez disso, foi complacente com a corrupção e o crime organizado que afetaram o apparatus de inteligência e as forças armadas.

Em corolário, a falta de coordenação na atual defesa contra a ofensiva dos Hayt Tahrir Al-Sham (HTS) reflete essa conjuntura, em que o regime sírio entrou numa espécie de stasis, com unidades militares desorganizadas e mal preparadas para se posicionarem nas linhas da frente. O conflito, ao contrário do que alguns argumentam, nunca ficou totalmente congelado. As lutas internas continuaram ativas, e um dos maiores problemas atuais é o ressurgimento do ISIS no centro do país, onde os vácuos de poder fertilizam as ideologias extremistas.

No contexto do ataque, a resposta do Presidente Assad tem sido limitada e, embora a Rússia tenha intervindo antes, não há garantias de que esse apoio seja incondicional e indefinido. Apesar da abundante informação que circula neste momento, é difícil compreender a realidade in loco, e muito menos os objetivos da ofensiva. Este desafio torna-se ainda mais complexo no cenário da guerra israelo-palestiniana, na questão do Hezbollah e do Líbano aliada à influência do Irão, e nos interesses de várias potências como a Turquia, o Qatar, a Rússia e os Estados Unidos. Juntando a isso, temos os atores internos sírios não estatais, a oposição e outros grupos, como a Irmandade Muçulmana e os pan-arabistas, onde diversos interesses cruzam-se, divergem e criam ramificações contraditórias.

Todavia, o xadrez geopolítico sugere um pragmatismo por parte das potências externas. Tanto a Turquia, que procura influenciar os acontecimentos na Síria através do Exército Nacional Sírio e enfraquecer o poder curdo, a Rússia, que deseja erradicar os jihadistas que lutam em vários grupos, muitos deles da Ásia Central e do Cáucaso, e os Estados Unidos e Israel, interessados no afastamento do Irão e na diminuição da influência xiita no país e na região, ganham com a situação da ofensiva. Esta dinâmica é, porventura, um reflexo das constelações de poder que se dissolvem e se unem em determinadas situações onde o interesse é real.

As implicações internas e regionais desta situação podem reformular o mapa do Médio Oriente, com contornos ainda por definir. Embora as pessoas tenham oferecido pouca resistência e até aplaudido os combatentes (alguns retornados de outras partes) em Alepo, estes sustentam uma ideologia islamista dúbia. Porém, é importante considerar a agência dos sírios e as múltiplas camadas e posições que cada um deles ocupa. Apesar de HTS mostrar uma faceta mais inclusiva - algo aprendido nos últimos anos - nada garante que essa postura se mantenha à medida que o teatro operacional se complica. Em termos tácticos, o grupo não consegue operar no interior e noutras partes da Síria. A Rússia já alocou recursos para os combater, mas a sua estratégia é limitada e imprevisível, com capacidade de projeção restrita às bases militares sob o seu controlo.

A nível regional, os países árabes e as monarquias do Golfo desejam uma Síria estável, independentemente de Assad estar ou não no poder. O problema das drogas, especialmente o captagon, é grave e afeta a Arábia Saudita e outros países, assim como os refugiados sírios na Turquia, no Líbano e na Jordânia, que são pressionados para retornar ao seu país fragmentado.

Infelizmente, a Síria tornou-se um país assolado pela “guerra eterna”, expressão que Biden e Trump usaram nas suas campanhas presidenciais. O papel dos Estados Unidos no país pode ser considerado um fracasso, especialmente durante o mandato de Obama, que adotou uma política ad hoc, tratando a guerra síria como uma crise a ser gerida. A intervenção americana limitou-se a um conjunto de bases militares alinhadas com as forças curdas, que recentemente têm sido alvos de ataques por proxies iranianos. Trump, por sua vez, afirmou que a sua intenção, caso fosse eleito, seria retirar as tropas americanas, o que levanta questões sobre a resistência curda no Norte e a sua luta pela independência.

Portanto, o que poderá ocorrer em Alepo e nas cidades circundantes? É prematuro tirar ilações, mas é possível perceber que a multiplicidade de atores e agendas competitivas está a tornar-se cada vez mais amalgamada. Temos aqui uma questão moral, em que a oposição ao regime de Assad não é uma luta por um bem absoluto, já que muitos dos grupos que se opõem contra o regime são extremistas. Por outro lado, o desespero leva as pessoas a priorizarem a sobrevivência e a fazerem escolhas entre uma série de males menores, como o HTS, que, na realidade, não são menores, nem muito menos aqueles que buscam paz e estabilidade. O HTS é um grupo que sofreu várias transformações ideológicas e políticas, assim como mudanças nos seus financiadores e apoiantes. Se continuarem a controlar as cidades conquistadas, é possível que haja uma reconfiguração do poder interno. Em outras zonas onde Assad ainda exerce controlo, o regime permanece estagnado, e mais cedo ou mais tarde, a transição será inevitável. Nessa realidade, poderão ser estabelecidos acordos políticos entre quem estiver no poder, seja o HTS ou outros grupos da oposição, assim como com os atores estrangeiros envolvidos.

Tudo muda rapidamente, e aqueles que conseguem adaptar-se à constante mutação da realidade política são os que conseguem ter maior domínio e influência sobre os eventos. Sendo assim, vislumbra-se um futuro incerto para a Síria, dando razão às palavras de Nietzsche: aqueles que se envolvem na guerra contra monstros, muitas vezes, acabam por se tornar monstros também.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate