Quid pro quo. As coisas, todas elas, costumavam ser mais simples, a começar na corrupção, que se explicava e punia em tempos idos, no essencial não muito remotos, com base na ideia expressa por aquela expressão em latim (que o Português de lei fez entretanto degenerar em significados equívocos — e nesse equívoco há aliás uma ambiguidade também ela plena de significado —, ao ponto de se cunhar como palavra oficial o estranhíssimo “quiproquó”).
Quid pro quo. Uma expressão enxuta e definitiva como (quase) todas as coisas simples, e que não quer dizer senão uma coisa por outra, isto em troca daquilo.
Vieram depois os levantamentos contra as dificuldades de prova, a lusitana e sempiterna falta de meios, as tolerâncias e as generosidades na valoração da prova dita indireta e, pontuando e acompanhando tudo isto, veio também, como vem quase sempre, a ousadia expansiva do legislador, sempre atento às manchetes e ao sentimento popular e agora também às redes sociais, pois claro, galgando metros e quilómetros com anúncios e propostas de novas e sofisticadas incriminações a pretexto do combate à corrupção.
E neste admirável mundo novo a corrupção passou material e simbolicamente a ser também uma série de outras coisas. Passou a abarcar o tráfico de influências, e a participação económica em negócio, e a oferta e recebimento de vantagem, e também a corrupção (cujo conceito tem na origem e como pressuposto o suborno de um agente do Estado) no setor privado. Seguindo ao pé de letra o pensamento de alguns decisores do nosso sistema de justiça, haverá até já quem coloque na funda gaveta de corruptos e corruptores o lobbying, as contrapartidas privadas em negócios públicos, as interações entre responsáveis de empresas e agentes públicos ou ainda a assunção de funções privadas após exercício de cargos públicos, que os jornais e as televisões se apressam a colorir com a sentencionadora expressão das portas giratórias.
Nenhuma pessoa sensata coloca em causa a necessidade, até a urgência, de combater a corrupção e de dotar o Estado (embora não só o Estado) de instrumentos — legais, processuais, humanos, tecnológicos, etc. — eficazes para esse combate, e para os vários fenómenos associados ao que se quer combater, incluindo os que indicámos acima. Mas convém ter presente o contexto e o conjunto, e o fosso que por vezes existe entre boas intenções e bons resultados, recordando, com a sabedoria dos provérbios que nos chegam já testados pelo tempo, que, onde tudo vale, nada tem valor. O que, em raciocínio invertido, equivale a dizer que, onde tudo é ou passa a ser corrupção, ou onde se quer fazer parecer que tudo é e pode ser corrupção, chegar-se-á a um tempo — é esse o risco — em que já nada é corrupção ou percecionado como corrupção.
E esse é um dos efeitos perversos, paradoxalmente perverso, de se alargar continuamente, muito para além da ideia matricial de quid pro quo, o que se entende e o que se pune criminalmente como corrupção: a diluição dos limites, o esbatimento das fronteiras, a incerteza sobre o que se pode e não se pode fazer, sobre o que é afinal corromper ou ser corrompido.
O exemplo falhado da criminalização do enriquecimento ilícito, que o Tribunal Constitucional devolveu por duas vezes, e muito bem, à procedência, e que a nossa classe política (com as estrepitosas exceções dos flancos populistas, claro está, para quem a realidade é apenas um pormenor, muitas vezes aliás inconveniente, e que fazem do crime, rectius, das propostas de criminalização de tudo e mais um par de botas modo de vida) parece ter finalmente abandonado, é um bom exemplo desta forma de pensar e reagir.
Perante repetidas e angustiadas lamúrias sobre as dificuldades de investigar a corrupção e os seus autores, o Parlamento e o Governo, na melhor tradição do pensamento mágico, socorreram-se da lei para punir não o comportamento criminoso em si, mas o que ele gera (património incongruente com rendimentos declarados). Com o pequeno de problema de assim, além do espezinhamento de princípios centrais do nosso sistema, e além de nos dispensarmos, com a folgada consciência do facilitismo, de punir a corrupção propriamente dita (ou outros crimes graves geradores de vantagens), se descobrir que sensivelmente metade ou até mais dos nossos concidadãos se presumem criminosos até prova em contrário, designadamente por não terem consigo prova, com os sacramentais recibos e talões à cabeça, sobre onde e como adquiriam o carro ou o relógio ou o fato que levaram ao último casamento.
De boas incriminações está o Código Penal cheio, e não parece, por agora, que precisemos de mais ou sequer de mexer substancialmente nas que existem e ainda esperam pelo teste prático dos processos e dos tribunais. Em vez de tentar resolver as coisas de canetada, como dizia há umas semanas no Porto, com condimentos do Português do Brasil, a Professora Cláudia Cruz Santos, em Colóquio que tivemos o gosto de coorganizar, talvez seja altura de, porventura algo revolucionariamente, dar tempo ao tempo e ver no que as estratégias e os mecanismos e as agendas, etc., vão ou podem dar.
Até porque os números, pelo menos aqui, não mentem: todos os anos há mais inquéritos criminais instaurados por crimes de corrupção ou conexos, pelo que entre a realidade da corrupção e a perceção que existe sobre ela (porventura agravada, exata e paradoxalmente, pelo crescimento exponencial do número de investigações relacionadas e a sua notícia pública) também haverá uma distância relevante — havendo nesse intervalo um tempo, que é o da justiça, que recomenda esperar para avaliar ações e resultados.
“There are things known, and there are things unknown, and in between are the doors of perception”, dizia o autor do livro que dá título a este texto (e a uma certa banda rock fundada em Los Angeles nos anos 60), e dizemos nós com ele: é conhecido o que temos e para que temos; esperemos à porta pelos resultados, muitos ainda por conhecer e confirmar, sem confundir a realidade com as suas perceções.