Opinião

Sombras na Europa

Sombras na Europa

Miguel da Câmara Machado

Docente de Direito comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Desde crianças que temos medo das sombras que nos entram pelo quarto, do escuro que representa a incerteza, a insegurança e a imprevisibilidade. Também a Europa tem hoje muitos medos e sombras

A palavra “sombra” tem vários significados na Europa e no mundo. Em crianças, antes de dormir, tantos brincámos a jogos de sombras chinesas em que bonecos recortados em papel viviam aventuras nas paredes dos nossos quartos, normalmente representando animais dos quatro cantos do mundo: tigres chineses, ursos russos, águias americanas ou até lobos ou dragões marítimos portugueses.

Atualmente, pelo mundo inteiro, temos diversos jogos de sombras que importa acompanhar e a que temos estado mais ou menos desatentos, nos meses mais recentes, mais focados além-Atlântico ou nas guerras que proliferaram em vários lugares do mundo.

A sombra inglesa (ou os leões em luta)

Em Inglaterra, associa-se “sombra” ao “Shadow Cabinet”, o “Governo Sombra” que o partido da oposição tem sempre preparado para entrar em funções e que permite que os ministros do atual governo sejam acompanhados, como num jogo desportivo, quase “homem-a-homem” (ou “mulher-a-mulher”) nas suas funções. Estas são umas “boas” sombras a que não temos estado muito atentos, com olhos mais postos além-Atlântico, concentrados nas eleições norte-americanas.

Depois da vitória de Keir Starmer (mais um moderadíssimo Primeiro-Ministro trabalhista, que obteve uma maioria expressiva em julho passado, depois de década e meia de poder conservador), os seus oponentes – ou Tories elegeram novamente uma mulher para os liderar, depois de Margaret Thatcher (a Iron Lady que dizia que Tony Blair era a sua maior vitória por ter acolhido as suas políticas no partido rival); Theresa May (a Primeira-Ministra que herdou um Reino (des)Unido e foi obrigada a ativar o artigo 50.º do Tratado Fundador da União Europeia, iniciando a concretização do Brexit, sem ter uma maioria no parlamento que a apoiasse); e Liz Truss (a Primeira-Ministra que “durou menos do que uma alface”, mas teve tempo para se despedir da Rainha Elizabeth II, que reinou mais de 70 anos, desde Winston Churchill).

Eleita líder nas vésperas das eleições dos EUA, a 2 de novembro, Kemi Badenoch foi Secretária (ou Ministra) de Estado e do Comércio de Truss e Rishi Sunak e é filha de imigrantes nigerianos. É a primeira líder inglesa nascida nos anos oitenta (em 1980!) e apresentou o “Governo Sombra” com maior “diversidade” de que há memória na História recente. A nova “fotografia ministerial” é ilustrativa e, entre deputados com algumas décadas de parlamento, reencontramos Priti Patel, com lugar de destaque, a liderar o “Ministério Sombra” dos Negócios Estrangeiros; Claire Coutinho à frente do “Ministério Sombra” da Segurança Energética, Net Zero e Igualdade; Helen Whately com o Trabalho e as Pensões; Laura Trott com a Educação ou Victoria Atkins com o Ambiente, Alimentação e Interior. Rebecca Atkins será a Chief Whip no Parlamento, responsável por “manter na linha” os deputados conservadores.

O partido conservador continua a procurar “Damas de Ferro” e a não ter medo de fazer escolhas invulgares para as suas lideranças e para defender as suas políticas.

Badenoch rodeou-se de moderados, de uma equipa jovem e o seu percurso surpreende quem esperava um partido conservador “anti-imigração”, inovação ou “negacionista”. Nasceu em Londres, mas regressou com menos de 1 ano a Lagos, na Nigéria, com os seus pais, ambos professores, aonde cresceu até aos 16 anos. Especializou-se em Biologia, Química e Matemática, antes de obter um grau em engenharia de sistemas informáticos, tudo enquanto foi trabalhadora-estudante, com resultados brilhantes. Já surpreendeu várias vezes, incluindo na corrida à liderança dos conservadores e poderá vir a ser uma nova Primeira-Ministra Tory se aguentar o período difícil que a espera na oposição.

Por outro lado, em poucos meses, o Governo Starmer já se encontra muitíssimo desgastado. Ainda que isso não seja novidade na História recente inglesa: aconteceu a Jim Callaghan no final dos anos 70, a Gordon Brown no início dos 2000 e a quase todos os conservadores desde 2019. Quase tudo o que fazem parece falhar. Agora, há quem pergunte se, depois 14 anos fora do Governo, os trabalhistas se esqueceram como governar, com um PM demasiado entusiasmado em concertos da Taylor Swift, roupa ou aquisições caras que os pensionistas e a base de apoio do “Labour” não conseguem comprar ou adquirir. Tal como nos EUA, a esquerda vem sendo cada vez mais vista como elitista e “desligada” dos trabalhadores. Já há “leões” em luta no n.º 10 de Downing Street (a sede do Governo inglês) e não há uma política clara, simples e unificada quanto a quase nenhuma das matérias principais: imigração, habitação, segurança interna ou externa, administração pública, saúde ou relações com a União Europeia.

Até traçando o contraste com o governo português de Montenegro (sem maioria e um micro-controlo do parlamento), se nota a falta de impulso ou mudança que se esperariam de um líder fresco e supostamente com apoio na Câmara dos Comuns como o novo PM inglês. Já se ouvem muitas críticas “de dentro” – dos mais centristas aos mais progressistas – e o novo governo inglês poderá sofrer alterações muito em breve.

Enquanto fomos conhecendo os resultados eleitorais nos EUA, a queda do governo alemão, o esfarelar da política francesa, pensámos que o Reino Unido poderia reocupar um lugar de destaque no Ocidente, mas isso (ainda) não parece estar a acontecer. A União Europeia repetiu algumas das propostas de reaproximação a Starmer que foram rejeitadas pelos governos anteriores e este não mudou a posição, nem sequer em temas “fáceis” como a abertura e criação de um espaço de circulação de estudantes com a Europa Continental, que seguiria em linha com que muitas universidades inglesas têm pedido.

Em termos externos, Boris Johnson ou Sunak foram mais fortes e veementes contra Putin e a defender a Europa (pondo mesmo a economia inglesa, mais entrelaçada com a russa do que se pensa) do que Starmer, que se prepara, em 2025, para umas primeiras eleições locais que o vão pôr à prova.

Sombras francesas (ou uma luta de galos)

Em frança as sombras ou “ombres” são mais associadas às madeixas nas pontas dos cabelos, feitas nos mais chiques “salons de coiffure”. No verão passado, depois das surpreendentes eleições convocadas por Macron, o Parlamento ficou cheio de madeixas e já não conseguimos perceber bem a cor que tem.

Há uns meses, tentei comparar a Assemblée nationale, agora tripartida, a um croissant, mas em tons de azul, branco e vermelho, com (i) uma capa dourada da Ensemble centrista de Macron, um fofo miolo da mega coligação de esquerda da Nouveau Front Populaire, que juntou socialistas, comunistas, ecologistas e a France Insoumise de Jean-Luc Mélenchon e (iii) a crosta crocante da Rassemblement National de Marine Le Pen e Jordan Bardella, (iv) temperados com a manteiga e os doces do Le Républicains, que acabaram por dar a Macron o novo PM, Michel Barnier, um gaullista que foi o principal negociador do Brexit, da parte da UE. Poderá haver aqui um sinal de esperança... para as relações UE-Reino Unido.

Macron ainda não terminou o seu mandato e, como qualquer político vaidoso (a maioria são!) não quererá deixar o seu trono nas mãos dos seus maiores inimigos. Já veio anunciar que, depois de “tempos herbívoros”, é tempo de a Europa se tornar “omnívora” e, antes da extinção, o dinossauro europeu ainda pode fazer sombra a muitos no mundo (e há tantos sinais de risco de extinção…).

A França está quebrada e quebradiça, mas talvez o esteja menos do que os seus vizinhos espanhóis ou mesmo do que os alemães que, até fevereiro, estão num limbo. A União Europeia revela sinais evidentes de Império decadente, entre as burocracias de Bruxelas, os casos de corrupção em que são apanhados eurodeputados (franceses e não só) e lembram os dias mais tristes da Roma descrita por Cícero e precisava de um “choque”. Há quem “goze” com a Europa e afirme que “os americanos inovam, os chineses copiam e os europeus regulam”, obviamente impedindo a inovação. Esta crítica terá injustiças. A Europa ainda hoje é o berço do “modelo social europeu”, que tem custos e que foi construído com o esforço de muita coordenação e boas lideranças políticas no século XX. Nenhum desses gigantes confere a proteção na doença, na velhice ou dá educação como os países europeus.

No entanto, a necessidade de repensarmos a relação com os EUA, com a Rússia e com a China, a falta de uma estratégia comum quanto a segurança, energia ou todo o mundo “digital” e o eclodir de lutas internas e movimentos populistas que podem estar a reclamar a “última mão” dos mais institucionalistas podem ser o movimento impulsionador que farão as ambições de Macron e a diplomacia de Barnier reunir Starmer e os (novos ou velhos) presidentes primeiros-ministros alemães, italianos, espanhóis, polacos e não só para uma Reunificação Europeia, necessária, urgente e imperativa.

Sombras alemãs (águias mais ou menos antigas)

Os primeiros sinais na Europa e no seu “motor” depois das eleições nos EUA não foram os mais animadores: a chamada “coligação semáforo” desfez-se em cacos (no dia seguinte!) e, no entanto, nenhum dos líderes abandonou os respetivos partidos. Depois de um curto período na oposição, o partido conservador, a CDU, prepara-se para voltar ao poder, estando a liderar as sondagens com larga margem prevendo uma vitória a 23 de fevereiro. Não se sabe quão crescerá a AfD, o partido extremista de direita, mas parece seguro que irá reforçar a sua posição no Bundestag, o Parlamento da cúpula transparente.

Da Alemanha veio também Ursula von der Leyen que lidera a Comissão Europeia desde 2019, cargo que continuará a ocupar até 2029, com uma equipa que não é exatamente a que desejou, cheia de vários egos, águias e outros pássaros de vários Estados-Membros que ainda não se sabe como funcionarão e poderão concretizar os planos que o Conselho (órgão com bem mais poder do que a Comissão) terá para os próximos 5 anos. Von der Leyen, no entanto, poderá ter passado “de rainha a imperatriz”. Segundo o Politico, “quando revelou ao público os 26 comissários e as suas funções, um ponto ficou imediatamente claro: teria um controlo ilimitado sobre a política da União Europeia. Numa questão de minutos, introduziu um título importante com pouca responsabilidade num dos países mais poderosos da UE, apoiou os seus amigos e diluiu pastas poderosas, dividindo-as entre várias pessoas. A tomada do poder completou-se”.

A alemã poderá, aos poucos, ser a engenheira de uma nova Europa. Depois de ter jogado com os mecanismos do “Senado” ou Parlamento Europeu e ter aproveitado que Macron, o polaco Tusk ou o espanhol Sanchez estavam distraídos com política interna, vai precisar de todos, no Conselho (liderado por um Costa que promete ser menos “contrapeso” do que foi Charles Michel) e necessita de um Parlamento Europeu que não só aprove a sua equipa (este processo está em curso) como as suas medidas, para que possam começar a trabalhar, idealmente, o mais rapidamente possível. E ter os líderes europeus com a cabeça em Bruxelas, bem como uma diplomacia suficientemente estreita que é essencial para garantir a concordância com os seus planos para o futuro e a aprovação dos orçamentos necessários!

Sombras daqui até à Rússia (dos touros espanhóis aos bisontes polacos)

Ingleses, franceses, alemães (ou italianos?) poderão ter planos, mas há fragmentação e receios dentro e fora de vários países europeus que vão ter de ser enfrentados nos próximos 5 anos. A Espanha está mais fragmentada do que a Alemanha, mas poderá ter eleições apenas em 2027, tal como as presidenciais francesas, que tantos temem, mas até às quais ainda há um longo caminho a trilhar.

A guerra na Ucrânia é dispendiosa e vai continuar a exigir grandes esforços não só dos ucranianos, mas também dos aliados (que ainda não sabem como vai mudar a política americana – que, nos últimos dias da administração Biden também não tem estado muito estável), a nível económico, mas talvez humano, se for necessário estabelecer corredores humanitários, traçar novas fronteiras ou equilíbrios.

A sombra do tigre chinês assusta porque parece agir nas sombras, incentivando a Coreia do Norte a apoiar a Rússia, dando apoio à Rússia para aguentar as sanções económicas ou mantendo os estados ocidentais endividados (maioritariamente à China que tem cada vez mais bancos na lista dos maiores do mundo) e vem ganhando controlo de portos marítimos ou empresas estratégicas (como aconteceu em Portugal).

Para fechar com dois exemplos, a Espanha anda com medo de si própria e tem touros, internamente, a lutar por uma fragmentação que poderá ser inevitável a breve prazo e a Polónia encabeça a lista de países com medo das sombras do urso russo que, depois da Ucrânia, poderá querer abocanhar outras regiões europeias. No meio de tudo isto, a Europa, prestes a celebrar os 80 anos do fim da Segunda Guerra, lembra o poema de Pessoa: “Somos sombras de quem somos, e os restos que temos, no outro em que, almas, vivemos, são aqui esgares e assomos”. Esperemos que a Europa se reerga, para que não fiquemos perante uma Europa que seja uma sombra do que foi.

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