Desde a minha juventude o radicalismo estava à Esquerda, quer em sociedades autoritárias de Direita (o que se compreendia), quer em sociedades democráticas, liberais e capitalistas. No entanto, o Mundo mexeu-se, como diria Galileu.Por várias razões, entre as quais a destruição do sonho messiânico do comunismo e a vitória da liberdade individual, os revoltados tornaram-se mais de classe média, com algum estatuto social e o receio de o perder
Na passada semana prometi analisar hoje com detalhe – a partir do fenómeno Trump:
O conflito entre liberalismo e democracia;
A exigência de gratificação instantânea;
A passagem das classes desfavorecidas da Esquerda para a Direita.
Talvez alguns de vós – habituados ao ritmo semanal de sucessão de novos temas que afastam os que dias antes pareciam ser essenciais – não aceitem que eu insista no que já abordei, em vez de andar a correr como uma barata tonta atrás de outros temas que vão surgindo e duram menos que a espuma das ondas.
Pois é, mas enquanto eu andar por aqui é assim que considero justificar o que tento fazer. Vamos, pois, a isso.
A DEMOCRACIA CONTRA A LIBERDADE?
A Democracia – que se exprime na escolha dos dirigentes pelo dirigidos – foi na vitória de Trump respeitada acima da média, mesmo a dos países mais liberais.
Se alguém se poderia queixar seria aliás o vencedor, pois ele derrotou o incumbente e enfrentou os instrumentos de soft power da quase totalidade das forças e estruturas culturais dominantes.
As credenciais de todas as vitórias nas eleições de novembro (que lhe deram a primeira “trifecta” do partido Republicano desde a reeleição de George W. Bush em 2002) foram assim impecáveis e concretizaram-se na que continua a ser no Século XXI a mais democrática sociedade do mundo, que leva ao paroxismo a participação dos cidadãos até na escolha de juízes e acusadores criminais (“district e state attorneys”).
E, no entanto, a essência da teoria e prática dessa vitória da Democracia é intensamente iliberal ou mesmo antiliberal.
Isso resulta do programa aparente do candidato eleito, como é óbvio. Mas resulta ainda mais da demonização malcriada que ele fez dos adversários, da nula vontade de compromisso, da recusa do sistema de freios e contrapesos.
Mas, pior do que isso, mais de 76 milhões de americanos votaram nele, ao menos como mal menor, e mais de 73 milhões de americanos votaram contra ele achando-o a encarnação de um mal maior.
Veja-se o impressionante gráfico que tirei do Financial Times e que retratava a realidade em 2021, hoje muito mais polarizada. Os dois blocos estão cada vez mais dominados por radicais: quer ganhasse um quer fosse o outro, sempre seria uma derrota para o sistema liberal.
Esta tendência já existe na América Latina e cresce na Europa, para não falar das “Ditocracias” que dominam em África, na Ásia, e em alguma América Latina, quando não são autocracias ainda piores.
O problema é que a vontade popular é cada vez mais liberticida e o voto dá boa consciência e uma certa legitimidade a quem a não merece.
Os equilíbrios que se foram formando entre democracia e liberdade – matriz do Estado de Direito - estão assim em grave e crescente crise.
Ora não pode haver Democracia sem Liberdade, nem Liberdade sem Democracia.
Quando o vírus antiliberal atinge com esta força a Esquerda e a Direita da maior e mais pujante Democracia Liberal do Mundo, só podemos prever o pior.
A ROTA PARA O ILIBERALISMO
Como expliquei na passada semana, os EUA são “o” caso de sucesso económico nos últimos trinta anos a nível internacional. O incumbente deveria ter ganho.
No entanto, a desintermediação da ação política e das mensagens, que formalmente parece ser fortemente liberal, está a gerar sociedades cada vez mais “iliberais”.
A questão principal aqui realçada é a tendência para que as mensagens críticas da atuação dos poderes sejam projetadas pelas redes sociais (mas também pela media institucional, que com elas concorre nivelando-se por baixo) sem qualquer análise, alocação de responsabilidades, medição de risco/benefício das exigidas intervenções que respondam às exigências veiculadas.
As sociedades demoliberais baseiam-se no “trinómiodemands/capabilities/decisions”. Sem as “demands” (“exigências”) como input para o sistema político (e sistema social em geral), as sociedades estagnam e deixam de responder às necessidades que resultam da vontade popular.
Mas o sistema entra em entropia e degrada-se quando é confrontado com exigências constantes, por vezes contraditórias e que pretendem resposta imediata. Sobretudo quanto a canalização das exigências é feita com automatismos, sem mediação nem filtro e sem agregação optimizadora.
Essa é uma gravíssima e generalizada doença do nosso tempo.
OS RISCOS DA GRATIFICAÇÃO INSTANTÂNEA
É isso o que estamos cada vez mais a viver no mundo das democracias liberais, com o que chamei na passada semana a “exigência de gratificação instantânea”.
Não há sistema político que resista a isto, sobretudo quando os sistemas de comunicação se baseiam num modelo de negócio de hiperpolitização e hiperpolarização do debate, na ampliação de problemas que não há tempo para investigar nem condições para serem abordados com as “nuances” que a vida tem.
E ainda mais porque os públicos-alvo não admitem reflexão e pausa, estão sobre-excitados e pedem semanal ou diariamente novos temas para extravasar a sua (constante, endémica e aditiva) irritação.
Perante isto os radicais/populistas têm uma vantagem competitiva enorme que se declina em:
Apresentação de críticas radicais a tudo o que vai sendo ampliado por redes sociais e media institucional,
Propostas de “soluções” irrealistas, irrealizáveis, simplistas, e contraditórias com outras recentes,
Feitas por quem nunca esteve no espaço do Poder e por isso não tem “track record” passível de crítica.
O resultado é que todos os partidos moderados acabam a entrar nessa roda enlouquecida e os governos passam a ter de reagir como se exige aos bombeiros e ao INEM, dando respostas imediatas para apagar fogos ou enfrentar urgências.
E assim nasce um círculo vicioso:
Governa-se em cada dia para abordar os temas dos noticiários televisivos da véspera, eles próprios resultado das redes sociais ou amplificadores delas,
Essa abordagem exige promessas instantâneas para as exigências de gratificação instantânea,
E passado uns dias isso já não interessa aos media nem às redes sociais, ocupados com novas exigências, que exigem novas promessas,
O que gera uma compreensível sensação de frustração, perante decisores políticos que prometem e não fazem, ou quando fazem isso já deixou de ser notícia.
É nesse terreno que os miasmas populistas se reproduzem, como vimos com Trump a anunciar soluções imediatas e instantâneas para todos os problemas, sem vergonha nem cautela.
REVOLTA VEM DA ESQUERDA PARA A DIREITA?
É neste contexto que surge a terceira reflexão. Sempre nas sociedades houve e há revoltados e pulsões revolucionárias.
Desde a minha juventude o radicalismo estava à Esquerda, quer em sociedades autoritárias de Direita (o que se compreendia), quer em sociedades democráticas, liberais e capitalistas.
No entanto o Mundo mexeu-se, como diria Galileu.
Por várias razões, entre as quais a destruição do sonho messiânico do comunismo e a vitória da liberdade individual, os revoltados tornaram-se mais de classe média, com algum estatuto social e o receio de o perder.
Se a isto se juntar a crescente conquista sociológica da Esquerda pelas elites culturais e a conquista ideológica por causas cada vez mais fraturantes, temos o essencial do caldo de cultura que acentuou a passagem da revolta populares e do seu conteúdo para a Direita.
É verdade que o fascismo e o nazismo cresceram de medos semelhantes.
As classes médias revoltadas, temerosas da perda do que com tanto esforço os seus pais e eles próprios alcançaram, querem que as protejam e cumpram o que lhes prometeram.
Mas não seguem o imaginário delirante dos fascismos, pelo que não se revêm na caricatura que fazem deles.
Chamar fascismo ao que está a ocorrer (como se faz nos EUA e na Europa) é mais um exemplo da insanidade à Esquerda, que apenas aumenta a revolta e os seus efeitos.
As classes médias são o núcleo da democracia liberal que sem elas não existe. Devem ser reconquistadas e não ofendidas.
A este tema voltarei brevemente.
A ESPUMA DO ORÇAMENTO
Nisto estamos. E em outras coisas: como é a espuma dos dias a dizer-nos que daqui a dias o Orçamento será chumbado ou a AD votará contra ele por causa da subida de pensões com que o PS quer mascarar a sua impotência atual.
Não digo que isso seja uma invenção para nos manter agarrados ao fluxo comunicacional, e já me admiro pouco com a insensatez das elites.
Mas não me parece que faça qualquer sentido que a AD abra uma crise política por causa de um aumento de pensões de 200 milhões euros por ano quando aceitou engoliu os custos que se repetirão de disparates ou medidas não prioritárias da aliança PS/CHEGA antes do Verão.
E também não acredito que o “pedronunosantismo” (que raio de nome…) estique infantilmente a corda e torne inevitável a crise que lhe custará mais do que aos rivais.
O ELOGIO
O elogio é a Biden e a quem com ele deu um passo em frente na Ucrânia após a vitória de Trump em relação a mísseis de longo alcance.
A estratégia é óbvia:
tentar nivelar o terreno quando se vai iniciar a fase de negociações;
entalar o “bully” Trump para evitar que comece a dar demasiada força negocial a Putin;
convencer Zelensky que mesmo com todos os apoios tem de fazer cedências, nem que seja para uma solução “coreana”.
Não está garantido que tenha sucesso, mas não tinha melhor alternativa.
LER É O MELHOR REMÉDIO
Teolinda Gersão é uma escritora que acompanho e leio há muitos anos e que tem o enorme mérito de não ser um fogo fátuo de uma moda passageira.
A “Autobiografia não escrita de Martha Freud” (Porto Editora) aborda a relação entre o fundador da psicanálise e sua mulher, “silenciada e reduzida ao estereótipo de esposa, mãe e dona de casa”.
Tema difícil e fascinante que recomendo mesmo antes de ter lido este romance baseado nas cartas que se escreveram.
“Memórias de Adriano” (Relógio de Água) é um dos livros da minha vida, escrito por um dos autores que mais li (Marguerite Yourcenar), reeditado agora na tradução de Maria Lamas.
Nada vale a pena dizer que não seja que se houvesse um romance perfeito, clássico por ser sempre moderno, em minha opinião seria este.
A PERGUNTA SEM RESPOSTA
Por motivos que não vêm ao caso chegou-me a informação de fonte primária segura de que está em elevada expansão aquilo a que impropriamente chamam “turismo de parto”: emigrantes em países europeus ou residentes sobretudo em países asiáticos vêm a Portugal usar o SNS gratuito, colocando muita pressão num sistema que mesmo sem isso tem conhecidas dificuldades.
Fiz rápida pesquisa na Google e descobri que, desde 2022 pelo menos, de vez em quando surgem notícias revelando este tipo de negócio de sucesso pago pelos contribuintes.
Pode ter-me escapado algo, mas não vi em 2 anos uma única reação do Ministério da Saúde ou da DGS, talvez por esta ter estado muito ocupada a mudar para cor neutra uns impressos que existem (ridiculamente, é certo…) em azulinho e cor-de-rosinha.
A pergunta: isto é verdade? E pode? E se pode, não há nada a fazer?
A LOUCURA MANSA
A 1ª Dama do Brasil, conhecida por Janja, no evento internacional “G-20 Social” em que discursava há dias, afirmou “Musk, eu não tenho medo de Você, aliás fuck you, Elon Musk”.
Para além do elevado requinte que Janja revela, a frase é aquilo de que o seu marido menos precisava para abrilhantar a reunião das 20 maiores potências mundiais que recebeu no Rio de Janeiro.
Se isto não é uma loucura é ao menos uma malcriação perante a qual – e não é dizer pouco – Trump quase parece um cavalheiro…
E isto é, sem dúvida, mais um exemplo da situação em que está o Mundo.