O Feiticeiro de Ozshington
Tentemos rever a campanha, as personagens, a coragem (ou falta dela?), o coração, o cérebro e as ilusões com que Trump percorreu uma estrada de tijolos dourados para reconquistar a América
Docente de Direito comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Tentemos rever a campanha, as personagens, a coragem (ou falta dela?), o coração, o cérebro e as ilusões com que Trump percorreu uma estrada de tijolos dourados para reconquistar a América
No final do mês, chegará ao cinema o musical “Wicked”, apresentando uma nova perspetiva sobre as personagens, as bruxas e o Feiticeiro de Oz, criado por L. Frank Baum em 1900.
Em busca desse feiticeiro, seguiam três personagens icónicas da literatura do século XX: um leão sem coragem, um homem-de-lata sem coração e um espantalho sem cérebro, numa estrada de tijolos dourados que pode ser uma boa metáfora para analisar o percurso e a campanha eleitoral deste “Feiticeiro de Ozshington”, que, entre truques e ilusões, veio conquistar a América e dominar Washington, D.C., rodeado de várias figuras que é útil conhecer para prever o futuro lá e cá.
A campanha e a vitória de 2024 têm muitas diferenças em relação aos resultados de 2016 e 2020 (que já tinham sido históricos, para Trump e para o partido republicano). Se o Feiticeiro de Oz conquistou, com diversos truques, encantou (e enganou) a Cidade Esmeralda, o novo Presidente-Eleito conseguiu, com manipulações, sorte ou apoios surpreendentes, fazer a capital dos EUA mais vermelha do que nunca: chegou à Casa Branca com uma vitória expressiva em relação à sua oponente, em votos e nos Estados “dançarinos”; conseguiu uma vitória confortável no Senado (podendo perder um dois votos e, ainda assim, vencer as votações e confirmar quem nomeie); tudo aponta para manter a Câmara dos Representantes e para conseguir nomear novos juízes para o Supremo Tribunal, rejuvenescendo a sua maioria conservadora e deixando uma enorme marca naquele Tribunal (eventualmente atingindo 5 ou mais nomeações no total daquele pequeno grupo de elite de 9 juízes, determinante para decidir o Direito americano e influenciar o do mundo inteiro).
No conto de Baum, o Feiticeiro chega com “bons ventos” a empurrar um balão que lhe permite ser acolhido pelos habitantes de Oz como “Fabuloso” (ou “Wonderful”, no original). Trump teve as 50 estrelinhas da bandeira dos EUA a brilhar a seu favor (e não preciso de desenvolver o que tem sido escrito em todos os comentários): foi recandidato no ano em que quase todos os incumbentes perderam eleições (do nosso Portugal à velha Inglaterra); assistiu a 4 anos em que a economia e a inflação deixaram feridas fortes na população americana e o partido democrata desleixou-se e preparou uma das piores campanhas de que há memória na vida política recente; Biden não se afastou e foi empurrado tarde demais, depois de um debate que nos deixou com uma das frases mais marcantes de sempre: «I don't really know what he said!». Trump não sabia ou não quis entender o rival e também nós nunca chegámos verdadeiramente a perceber a mensagem política democrata para 2024, antes ou depois de Biden.
Isto não foi preparado. Foi oferecido ao Presidente-Eleito que, aí, mostrou calma e uma resposta perfeita. Podia haver muito para defender do mandato de Biden, desde o plano de recuperação económica (que funcionou mais rápido e melhor do que os da maioria do mundo ocidental) até ao programa de infraestruturas (que Trump não conseguiu aprovar anteriormente), conquistas na relação com farmacêuticas ou a aposta no “Made in America” (que, na realidade, foi uma continuação de políticas da administração anterior). No entanto, Biden foi dizimado e Kamala ficou presa num limbo entre assumir-se como candidata “da continuidade” ou “da mudança”. E Bernie Sanders foi injusto, no rescaldo, ao acusar os democratas de terem abandonado os trabalhadores: Biden foi o 1.º presidente da História a juntar-se a sindicalistas numa greve e, curiosamente, Kamala teve mais votos e uma vitória maior do que Sanders no seu estado do Vermont! Mas o mesmo não aconteceu pelos EUA…
Donald Trump venceu nos sete swing states, mas em seis houve senadores democratas a vencer. A campanha de Kamala falhou e o contraste com outros resultados do seu partido é ilustrativo. A “Team Trump” chegou ao núcleo de apoiantes democratas e há um nome forte a representar essa vitória. Para além dos “bons ventos”, logo após o debate de junho, também vimos a principal fotografia que nos ficará da campanha: o tiro que atingiu na orelha e fez cair um septuagenário que imediatamente se levantou, de punho levantado, sangue a escorrer, gritando “Fight, fight, fight!”. Nessa noite, ainda Biden não se tinha retirado e todos apostavam que aquele candidato, meio louco (ainda estava na mira!), meio… corajoso, iria ganhar.
De seguida, escolheria J. D. Vance, o autor de Hillbilly Elegy (Era Uma Vez Um Sonho. A História de Uma Família da Classe Operária e da Crise da Sociedade Americana), uma das mais jovens esperanças dos conservadores americanos, para seu candidato a Vice-Presidente. Para quem ler o livro é incrível imaginar como aquele rapaz pobre passa a estar a “uma batida de coração da presidência”. O testemunho de família, o que mudou para fazer o seu casamento funcionar, a história que conta lembram a Audácia da Esperança ou outros livros com que o jovem Senador Obama nos encantou há 20 anos. Trump arriscou e escolheu uma estrela em ascensão (Kamala não).
É fácil ver Vance como um leão… o republicano foi a todos os canais de televisão, a inúmeros podcasts e programas afetos aos democratas defender a sua candidatura, ganhou o debate contra Tim Walz (e conseguiu demonstrar que concordavam em muitas ideias – há uma aproximação entre os atuais partidos republicano e democrata de que muitos não querem falar, mas o protecionismo económico, o isolacionismo, o “Made in America” ou “America First” não os distinguem profundamente). No entanto, também conseguimos ver J. D. como o leão sem coragem para assumir o que o afasta de Trump, o que criticou no passado, o estilo que parece evidente ser-lhe repugnante (como a tantos moderados nos EUA ou na Europa), mas Vance quis subir e é um dos que hoje estão na linha da frente para seguir a sua estrada de tijolos dourados até à Casa Branca em 2028 ou depois (é o VP mais novo desde que Nixon o foi para Eisenhower).
Outro dos apoios determinantes e mais visíveis foi o de Elon Musk. As fotografias dos seus saltos atrás de Trump, os seus tweets (ou xweets?) que reforçaram o apoio ao candidato, as suas promessas e sorteios para reunir apoiantes e eleitores, e o discurso final de Trump a elogiar a descolagem do seu foguetão farão inevitavelmente parte dos relatos sobre a campanha de 2024.
Ainda não percebemos bem aonde tem Musk o seu coração, se é (só) na carteira e nas empresas que quer que mantenham contratos com o Estado americano, se é (também) nos sonhos que o fizeram arriscar verdadeiramente várias vezes e parecem fazer dele um parceiro real para ambicionarmos termos uma mulher a pisar Marte nas próximas décadas (sobre o programa americano já sabemos que será uma Capitã a liderar essa missão, quando acontecer). Nesse sentido, Musk dá alma e coração e, mesmo bilionário, apela aos sonhos de tantos que o seguem, das redes sociais aos seus carros elétricos, e também parece ser exemplo de um emigrante que conseguiu vingar nos EUA.
Por outro lado, Musk recorda outros bilionários, como Bezos, que impediu o Washington Post de fazer um “endorsement” (apoio presidencial) este ano e é um dos maiores interessados em ver a sua Amazon imaculada, contra as tentativas de a dividir ou partir para assegurar maior concorrência (Biden tentou e não conseguiu). Os gigantes Amazon, Apple, Google, ou Microsoft continuam intocados (ou muito pouco afetados) pelos governos americanos e Musk foi só um rosto visível de um desses mega-bilionários que agora se envolvem mais ativa e visivelmente nos mecanismos da política americana que procurou um CEO e voltou a ter um “homem-forte” na liderança. Muito provavelmente, Elon Musk não ocupará um cargo na administração, mas enviará alguns dos seus engenheiros (corações ou “óleos” das suas engrenagens”) para ocupar funções-chave em posições do novo Governo Trump.
Depois da desistência de Biden (curiosamente, através de um “xweet”), o partido democrata não teve nem tempo, nem capacidade, para ter o cérebro de inventar uma solução “fora-da-caixa” e mais inteligente e recebeu a VP como candidata sem debate ou discussão. A candidata que tantos outros democratas tinham derrotado em 2019, com fraquezas já conhecidas do partido e do mundo, que tinha exercido um mandato apagado e estava mais associada a algumas das políticas mais frágeis da administração (como quanto à emigração) foi catapultada para o topo do ticket e apresentada aos corvos, feita espantalho num campo em que foi atacada em muitas frentes. Não iremos aqui aprofundar as bicadas nesse espantalho, mas é difícil recordar uma mensagem inovadora, uma frase que lhe fique associada, diferente das breves menções ao seu percurso (como à mãe de classe média e à menina que andava nos autocarros de que falou num debate contra Biden, 5 anos antes) ou, principalmente, das críticas ao seu adversário, em torno de quem deixou que a campanha continuasse a girar e girar, qual furacão que levantava as casas do Kansas até Oz.
Depois do breve entusiasmo com a substituição do velhinho Biden e a Convenção Democrata, RFK, Robert Kennedy Jr. (com “sangue real-presidencial”, filho do irmão Bobby, assassinado em 1968, numa campanha para presidente), democrata, que este ano concorria como “third-party candidate” veio anunciar a desistência da sua candidatura a favor de Trump, conferindo uma aura bipartidária que lhe vinha faltando e aumentando a ideia “aspiracional” desta candidatura.
Com ideias mais ou menos surreais, RFK Jr., Trump Jr. (que não teve real importância na primeira presidência do pai e parece ter agora) ou outros “espantalhos” apresentados pela oposição como fantasmas e monstros gozados nos programas da noite, deverão agora receber responsabilidades que recordam, por exemplo, Ben Carson, o candidato afro-americano que renunciou em 2016 para receber um cargo na administração em 2017 e fez fraca figura (mas o sistema aguentou…).
Desde que chegou ao palco na noite da vitória, que começámos a conhecer os nomes do novo Governo Trump e parece seguro que não será exclusivamente masculino. O grande cérebro, ou a fonte de magia por trás da candidatura vitoriosa de Trump, terá sido Susie Wiles, para muitos uma “Fada Madrinha”, que vem acompanhando o republicano desde 2016, para outros uma “Bruxa do Sul”, vinda da Flórida, é uma «força que se sente mais do que se vê na política americana», de acordo com um perfil que o “Politico” traçava no verão, como força imparável, ainda antes de a vermos subir ao palco no dia 6.
Wiles será a 1.ª mulher a ocupar o cargo de Chief of Staff do Presidente dos EUA (um cargo que se aproxima mais do de primeiro-ministro do que de chefe de gabinete, no modelo presidencial americano) e terá feito várias exigências para que a 2.ª Administração Trump funcione melhor do que a primeira (a sua experiência no partido vem desde campanhas com Reagan até Ron DeSantis).
A “Bruxa do Norte” pode ser Linda McMahon, fundadora da principal liga de Wrestling, uma das maiores financiadoras e angariadoras da campanha de Trump, é a favorita para Secretária (ou Ministra) do Comércio (ou Economia, tentando adaptar os cargos à nossa realidade) e promete trazer mais músculo e força nesses domínios, animando os insatisfeitos com os anos Biden-Harris.
Vinda da capital económica, Nova Iorque, a “Bruxa do Este” deverá ser Elise Stefanik, a congressista mais jovem eleita em 2014, que rapidamente cresceu até ao topo da hierarquia do partido na Câmara dos Representantes, e já foi anunciada como Embaixadora na ONU, espaço em que deverá revelar um posicionamento diferente dos EUA em relação àquela organização e ao mundo.
Tentando esticar a metáfora, a “Bruxa que anda a conquistar o Oeste” poderá ser a filha de Donald, Ivanka Trump que, com o seu marido, Jared Kushner, ocupou funções no primeiro governo do pai, tendo sido considerado moderados e ponderados na relação com o estrangeiro e mesmo desempenhado um papel crucial para atingir os Tratados de Abraão, que deram alguma estabilidade ao Médio-Oriente que, infelizmente, perdemos nos anos mais recentes.
Retomando a ideia “aspiracional” e os familiares candidatos ou presidentes – como John Adams (o 2.º), pai de John Quincy Adams (o 5.º); William Henry Harrison (o 9.º), avô de Benjamin Harrison (o 23.º); ou George H. Bush (o 41.º), pai de George W. Bush (o 43.º) – e lembrar os irmãos Kennedys, o casal Clinton ou mesmo os Obamas… Poderemos ter uma dinastia Trump e a filha preferida é claramente Ivanka Trump, a mais sofisticada, com um discurso mais articulado e que poderá ser a primeira mulher presidente dos EUA (alguns dizem ser um desejo secreto do pai).
Conquistar ou manter apoios em Sillicon Valley, na Califórnia, no Oeste, distanciar-se parcialmente dos maiores extremismos (ou mesmo potenciais e expectáveis erros) do Governo que agora vai começar também poderá fazer parte dos truques necessários para esta outra nova-iorquina conquistar a presidência e fazer História, enquanto mantém uma tradição “aspiracional” no seu caminho dourado.
Contudo, se há marca da independência americana é o facto de odiarem a ideia de um “rei inglês” cheio de poder e que manda sem limites. O lugar de presidente dos EUA, a que Trump agora regressa, foi desenhado na Constituição para prevenir isso mesmo: dos congressistas e senadores que têm agendas próprias (e eleições já em 2026: um terço do Senado e a totalidade da Câmara dos Representantes), passando pelos próprios Estados que, num modelo federal, têm força maior do que muitos parecem crer. Com a vantagem (bem mais reduzida do que se esperava) que os republicanos devem ter na câmara baixa do seu Parlamento, em 2024, é bastante provável que ali passe a haver uma maioria azul já em 2026. No Senado, também estarão na luta mais lugares “vermelhos” do que “azuis” em 26, pelo que o maior número de nomeações deverá/terá de ser feito num curto prazo.
A juíza Sonia Sotomayor (a liberal mais sénior no Supreme Court) pode ter cometido um erro estratégico semelhante ao de RBG (Ruth Bader Ginsburg) e Thurgood Marshall que não renunciaram no momento certo e acabaram substituídos por juízes com um pensamento diametralmente oposto e, com 70 anos e diversos problemas de saúde, poderá dar mais uma “nomeação-surpresa” a Trump.
Clarence Thomas, com 76 anos, e Samuel Alito, com 74, são juízes conservadores que deverão renunciar em breve e ser substituídos por novos juízes que decidam em sentido semelhante, consolidando a tendência da maioria por décadas, já tendo começado as apostas para os juristas “super-estrela” que serão escolhidos para aqueles lugares. Mas deverão ser notícias do próximo verão.
Nos próximos dias conheceremos, com maior certeza, os outros lugares-chave do Governo de 2025. Enquanto escrevia, o “pequeno” Marco Rubio (grande esperança dos republicanos, contra Trump, em 2015) era falado como o provável Secretário de Estado (um cargo entre o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros e PM), em mais uma das reviravoltas do novo reino de Ozshington, nas mãos de um Feiticeiro que conseguiu jogar com a coragem, o cérebro e o coração dos americanos, dando ao seu partido um controlo das instituições que o deixa quase rubi, como os sapatos de Dorothy.
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