Não podemos deixar afundar no vazio as vítimas dos impactos das alterações climáticas
Um realocado climático sem plano é uma pessoa forçada a sair do território onde vive em virtude da elevada exposição aos impactos das alterações climáticas
Jurista, doutorada em alterações climáticas e políticas de desenvolvimento sustentável, pela Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa
Um realocado climático sem plano é uma pessoa forçada a sair do território onde vive em virtude da elevada exposição aos impactos das alterações climáticas
As alterações climáticas (AC) ameaçam abalar um primado básico: a confiança que cada geração tem de permanecer no território do seu país de forma natural e permanente. Estamos a assistir à submersão dos territórios de pequenas ilhas e ao inevitável reassentamento das suas comunidades noutros locais devido a uma rápida subida do nível da água do mar.
Segundo a World Meteorological Organization os valores respeitantes à subida do nível da água do mar mais do que duplicaram nos últimos dez anos, com um aumento médio anual de 0,21 cm, entre 1993 e 2002, e de 0,48 cm, entre 2014 e 2023.
A ilha de Gardi Sugdub, ao largo da costa do Panamá, foi o primeiro caso de realocados climáticos que decorreu em junho deste ano.
O mais recente Emissions Gap Report 2024, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA), lançou um alarmante aviso: os objetivos globais de redução dos gases com efeito de estufa, estabelecidos pelo Acordo de Paris, estão longe de ser alcançados. Se o actual rumo errático não for invertido pode levar-nos a um aumento catastrófico da temperatura de 3,1ºC até ao final do século.
É por demais evidente que o aquecimento global e a rápida subida do nível da água do mar não dão tréguas e exigem um reforço empenhado na procura de um quadro internacional de protecção para as vítimas dos impactos das AC, o qual urge estar no epicentro do debate da COP29 (reunião anual dos signatários da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas- CQNUAC), que se realiza de 11 a 22 de novembro em Bacu, capital do Azerbaijão.
Até hoje, a ONU e a Organização Internacional para as Migrações não reconhecem estas vítimas como Refugiados, de acordo com o Estatuto dos Refugiados estabelecido pela Convenção de Viena de 1951- que protege pessoas com fundado receio de serem perseguidas por factores pessoais: raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas.
É verdade que o conceito de refugiado ambiental emergiu no quadro internacional fruto do relatório apresentado em 1985 pelo professor Essam El-Hinnawi, no âmbito do PNUA.
Porém, a ausência de um conceito consensual de refugiado ambiental, e da subcategoria de refugiado climático, não tem permitido a adopção de uma posição uniforme quanto à aplicação do Estatuto dos Refugiados. Este impasse dura há décadas!
A procura de outro quadro no âmbito do direito internacional é crucial. O ponto de partida do novo paradigma assenta em identificar a natureza das causas estabelecidas para a proteção internacional das pessoas refugiadas nos termos do Estatuto dos Refugiados: a existência de motivos intrínsecos à pessoa do refugiado. De facto, só aquela determinada pessoa pode sentir o receio dessa perseguição por um ou mais dos motivos tipificados. Já a natureza das definições doutrinárias de refugiados ambientais e climáticos assume uma dimensão estruturante territorial, incorporando três elementos: exposição elevada do território aos impactos ambientais ou das AC; incapacidade daquele território sustentar a vida humana; e deslocação forçada das pessoas desse território.
Esta destrinça entre a dimensão estruturante pessoal estatutária e a dimensão estruturante territorial constitui a linha fracturante que deslaça o conceito de refugiados climáticos da tipificação do Estatuto dos Refugiados e sustenta a inconsistência da aplicação extensiva àqueles da Convenção de 1951
Qual pode ser, então, a alternativa à luz do Direito Internacional?
Defendo, assim, um novo conceito, o de realocado climático sem plano, que expurga a dissonante camuflagem de “refugiado”, mas conserva o seu âmago conceptual - a dimensão estruturante territorial.
Um realocado climático sem plano é uma pessoa forçada a sair do território onde vive em virtude da elevada exposição aos impactos das AC. O elemento estruturante do conceito radica na impossibilidade, efetiva ou potencial, de manutenção duradoura naquele território. Ou seja, nestes casos, a exposição elevada do território aos impactos das AC, ao impedir que as necessidades de subsistência básicas possam ser satisfeitas por meios de ações adaptativas - as quais não existem ou não estão disponíveis -, resulta na impossibilidade de permanência das populações no local.
A realocação planeada é um processo que envolve o deslocamento involuntário de populações dos seus habitats e o seu reassentamento noutros locais. Esta medida de adaptação está prevista no Quadro de Adaptação de Cancun (2010), adoptado no âmbito da CQNUAC.
Complementarmente, é associado um elemento jurídico: o facto de o Estado de que a pessoa é nacional violar não só os deveres de elaborar e implementar um Plano Nacional de Adaptação às AC - que inclua medidas de realocação planeada das comunidades locais com elevada vulnerabilidade -, como os deveres de proteger o direito à vida com recurso a todas as ações necessárias e imprescindíveis face a situações razoavelmente previsíveis e suscetíveis de resultar em perda de vida e da sua família, o que obriga essas pessoas a atravessar a fronteira do país.
Nesta senda, é imprescindível o reforço de uma estratégia de cooperação internacional, em sede do Quadro de Adaptação de Cancun, assumindo um intento de solução conjunta como último recurso, sem prejuízo da aplicação do Direito Internacional. Tal significa uma actuação da comunidade internacional, com fundamento no artigo 6.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, sempre que se verifique haver motivos substanciais para acreditar que existe um risco real de dano irreparável para a vida da pessoa e do seu agregado.
O conceito de realocado climático sem plano pode constituir um bom ponto de partida para garantir uma vida digna a estas vítimas anunciadas das alterações climáticas. O problema imediato das populações das pequenas ilhas, como Tuvalu, Kiribati e outras pequenas ilhas que nos parecem tão distantes da nossa realidade, exige uma solução.
E, sim, essa solução é da responsabilidade de todos nós.
Nota: a autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.
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