Opinião

“Sem dó nem piedade”? Não, senhor Presidente da Câmara de Loures

“Sem dó nem piedade”? Não, senhor Presidente da Câmara de Loures

João Costa

Professor universitário, ex-ministro da Educação

Em Loures, entende-se que um condenado por um crime não tem direito a um teto para viver, porque, para além da pena que estiver prevista no Código Penal para os crimes que tiver cometido, a Autarquia deve ainda instituir umas penas acessórias, que, no caso, passam por remeter para a mais absoluta indigência o criminoso, retirando-lhe o direito fundamental à habitação

Foi noticiado que o PS e o PSD em Loures aprovaram uma proposta do Chega, de alteração ao regulamento municipal de habitação, para que se preveja ordem de despejo das casas municipais, quando se dá por provada a participação em crimes por parte dos arrendatários. É muito lamentável que estes dois partidos tenham acompanhado mais uma proposta populista e desumana do Chega, numa progressiva normalização de retrocessos que até há pouco tempo considerávamos inimagináveis na sociedade portuguesa.

De acordo com o que foi noticiado, no final do debate, o Presidente da Câmara de Loures terá dito que “É óbvio que não quero que um criminoso que tenha participado nestes acontecimentos… se for ele o titular do contrato de arrendamento é para acabar e para despejar. Ponto final parágrafo e é bom que este regulamento permita isso, e permite, no entanto é melhor revisitar. Quem é maior de idade, é titular de um arrendamento na habitação municipal de Loures e seja comprovado que participou nestes atos é para retirar a casa, ponto final parágrafo, sem dó nem piedade“. Não consigo vislumbrar grande diferença entre estas afirmações e a proposta iníqua do Chega nos Açores de relegar para última prioridade no acesso à creche os filhos dos desempregados. Em tudo vemos múltiplas penalizações. Nos Açores, acha-se que quem está desempregado não precisa de tempo para procurar emprego e que os filhos dos desempregados, tipicamente os que mais carecem de ambientes ricos em estimulação precoce, não são tão merecedores de ambientes educativos ricos quanto os filhos de quem trabalha. Em Loures, entende-se que um condenado por um crime não tem direito a um teto para viver, porque, para além da pena que estiver prevista no Código Penal para os crimes que tiver cometido, a Autarquia deve ainda instituir umas penas acessórias, que, no caso, passam por remeter para a mais absoluta indigência o criminoso, retirando-lhe o direito fundamental à habitação.

Que não haja equívocos. Carros incendiados, edifícios vandalizados, o terrível ataque ao motorista de autocarro, tudo isto é injustificado, porque não é com violência que as evidentes injustiças se resolvem. Como se afirmou na manifestação organizada pelo movimento Vida Justa, é com justiça que a paz se conquista. E, por isso, não precisamos de municípios que entendem substituir-se ao funcionamento da justiça encontrando novas penas.

É preciso perceber o que está em causa. Nas casas dos titulares destes contratos de arrendamento em edifícios municipais não vivem apenas os titulares. Vivem os seus filhos. Vivem os idosos que estão a seu cargo. Se pensarmos apenas nos filhos, estamos a falar das crianças que já estão, em muitos casos, em risco acrescido de abandono e insucesso escolar, que não têm condições de estabilidade emocional para entrarem todos os dias na escola com a mesma vontade de aprender que os seus colegas trazem de casa. E a solução é tirar-lhes o teto, porque os seus pais cometeram um crime? Saberão os responsáveis do executivo camarário que ter condições de habitação e um espaço para estudar autonomamente é um dos fatores que predizem sucesso escolar? Nunca vi a expressão “sem dó nem piedade” aplicada com tanta propriedade.

Nem entro em pormenor nas múltiplas dúvidas que me atravessaram o espírito quando li o relato da discussão na Câmara de Loures. Um cidadão que cometa um crime? Qualquer crime? Mesmo que injurie alguém ou que furte um litro de leite? Ou apenas se se tratar de distúrbios na via pública? Nesse caso, isso aplica-se aos estudantes de capa e batina que, embriagados, berravam impropérios e partiam garrafas de cerveja no chão às duas da manhã à porta da minha casa ou apenas a algumas tonalidades de pele?

Que esta ideia peregrina tenha partido da cabeça de um deputado do Chega não surpreende. Faz parte do ideário deste partido. As soluções fáceis para problemas complexos são a fórmula do populismo. Que PS e PSD vão atrás disto é assustador. Loures já nos deu o pai do populismo antissistema há uns anos. Não precisamos de mais e, sobretudo, é preciso que os outros partidos saibam que o original é sempre melhor do que a cópia, pelo que há riscos para o seu futuro eleitoral se não mostrarem que é possível pensar e agir de forma diferente.

Foi no governo do Partido Socialista que foi criado o programa Bairros Saudáveis. Os bairros sociais são o fruto de péssimo urbanismo ao longo de décadas. O livro Banlieue de la République, do sociólogo Gilles Kepel, é quase profético na análise que faz das consequências reais e possíveis da guetização. São necessárias políticas que continuem o espírito daquele programa, com respostas integradas e substantivas que garantam o acesso das populações mais segregadas ao trabalho, à cultura, à educação, à segurança e à justiça. Não é penalizando em cima de penalizações que se integra e se inclui. Esse é apenas o caminho para gerar mais descontentamento, mais revolta e mais violência. Que, depois da guetização, não surja como solução a retirada do teto é o mínimo da decência que se espera dos responsáveis políticos. Vêm aí eleições autárquicas. Não é a tocar as concertinas do Chega que se vão afirmar as diferenças.

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