Opinião

Saúde na era digital: a estranha sensação de falar para uma máquina 

Saúde na era digital: a estranha sensação de falar para uma máquina 

Filipa Couto

Investigadora no Instituto de Comunicação da NOVA, especialista em comunicação em Saúde

A transformação digital tem revolucionado a área da saúde, com sistemas automatizados a otimizar os processos de atendimento e marcação de consultas e exames. No entanto, a falta de interação humana em contextos de saúde levanta preocupações sobre a necessidade de comunicação e empatia, essencial para uma relação bem-sucedida com os utentes

Nos últimos anos, temos assistido a um avanço incrível na implementação de tecnologias na área da saúde. Um desses desenvolvimentos é a utilização de sistemas automatizados para o atendimento telefónico. Estes sistemas, projetados para resolver questões rotineiras ou para marcar consultas, prometem otimizar o tempo e os recursos das instituições de saúde. No entanto, por mais eficientes que possam parecer, levanta-se a questão da falta de interação humana em contextos tão delicados como a saúde.

Recentemente, tive de recorrer a um laboratório de análises clínicas e exames para agendar uma marcação de radiologia. Eis o meu espanto quando dou conta de que toda a marcação seria feita através de atendimento automático. Devo dizer, em abono da verdade, que o serviço foi eficaz e em poucos minutos tinha os exames marcados e até num curto espaço de tempo.

Contudo, senti a falta do fator humano. A experiência de sermos atendidos por um sistema automatizado afigura-se para mim como uma indiferença pelo utente e, até, uma falta de sensibilidade para com todas aquelas pessoas com alguma incapacidade para lidarem com estes mecanismos.

Por mais avançados que sejam os algoritmos e as tecnologias de reconhecimento de voz, há uma barreira intransponível: as máquinas não possuem empatia. No setor da saúde, onde muitas vezes estamos vulneráveis ou ansiosos, o fator humano é insubstituível.

Quando o utente recorre, mesmo que telefonicamente, a um serviço de saúde, muitas vezes procura mais do que um simples agendamento ou esclarecimento de dúvidas. Procura compreensão, tranquilidade, e uma sensação de que os seus receios são ouvidos. Um profissional de saúde ou assistente administrativo qualificado pode reconhecer a angústia de um utente, adaptar o tom de voz, explicar com mais clareza ou até aconselhar alternativas. Isto é algo que um atendimento automático, por mais sofisticado que seja, nunca conseguirá fazer.

Outro problema que para mim é manifestamente visível relativamente a este tipo de atendimento é a incapacidade de resposta a perguntas fora do guião pré-definido. Enquanto um ser humano tem a capacidade para se adaptar a diferentes cenários e respostas, os atendimentos automáticos seguem um percurso fixo e limitador. Frases como "Desculpe, não percebi" ou "Pode repetir?" acabam por aumentar os níveis de frustração.

Quando o primeiro ponto de contacto é uma voz artificial e despersonalizada, pode criar-se a sensação de que estamos a lidar com um sistema frio e distante, em vez de um serviço centrado nas necessidades das pessoas. Esta impressão inicial pode afetar toda a perceção de qualidade do atendimento das instituições de saúde, mesmo que os cuidados médicos em si sejam de alto nível.

O argumento de que este tipo de automatização liberta os profissionais para tarefas mais complexas e reduz os tempos de espera pode ser verdadeiro. Contudo, devemos questionar-nos qual o verdadeiro custo para os utentes. Não estaremos a renunciar à qualidade do atendimento a favor da rapidez?

De facto, esta minha última experiência no dito laboratório de análises clínicas e exames levou-me a refletir sobre se estaremos no caminho certo no que diz respeito à comunicação com os utentes. A tecnologia deve ser uma aliada nos cuidados de saúde e não uma ferramenta que substitui o contacto humano. Nesse sentido, é importante que as instituições de saúde, sejam elas de que natureza forem, não se esqueçam daquilo que realmente importa: promover os melhores resultados de saúde para os utentes com empatia e humanidade.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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