Opinião

Nem Vermelha, nem Azul, há uma América a conquistar?

Nem Vermelha, nem Azul, há uma América a conquistar?

Miguel da Câmara Machado

Docente de Direito comparado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Ao encerrar a época das convenções presidenciais americanas de 2024, ouvi ecos da noite com vinte anos em que um senador surpreendeu o mundo com dicas que, ainda hoje, podem inspirar os candidatos a melhor enfeitiçar o eleitorado e vencer em novembro

Há precisamente vinte anos, em 2004, no final da época das convenções partidárias e “espetáculos de lançamento” das candidaturas presidenciais dos Estados Unidos da América (EUA), ficaram a ressoar, e deixaram marcas para o futuro, as palavras de um jovem desconhecido senador do Illinois.

Então, este fez um discurso empolgante na Convenção Democrata que nomeou John Kerry para a eleição que este perderia contra George W. Bush. Nesses tempos, todos apostavam que a próxima candidata democrata, em 2008, seria Hillary Clinton, mas as contas foram baralhadas pelo surpreendente Barack Obama que continuou a arrebatar e venceu as eleições primárias e nacionais.

Em 2024, os ecos desse discurso voltaram a sentir-se quando o mesmo Obama veio repetir a mensagem essencial, com tons ligeiramente diferentes: “não vamos ganhar se pensarmos que há uma ‘América vermelha’ e uma ‘América azul’. Há uma América, há várias américas, há milhares de ‘eleitores médios’ para conquistar”.

Na semana passada, fechou a época de 2024 das convenções dos partidos e, depois da equipa Trump-Vance ter terminado, em julho, a sua convenção com as expetativas em alta, para vencer um enfraquecido e desanimado Joe Biden, especialmente depois de um atentado que uniu o partido republicano e garantiu que muitos “voltaram a casa” para a festa, o ímpeto foi rapidamente travado com a desistência (mesmo a seguir à Convenção) do atual Presidente e com a chegada de Kamala Harris, a vice-presidente (VP) que passou de ser a “veep” com poucos poderes e que nem se apresentou a votos depois de uma campanha desastrada nas primárias de 2020 para ser uma rejuvenescida candidata da união e dos memes, uma superestrela pop que, em poucas horas, recebeu os apoios de todos os potenciais rivais. Depois do fogo vermelho, chegou a chama azul.

Esta nova candidatura reacendeu a corrida presidencial, trazendo esperança aos democratas, novos números nas sondagens e um outro candidato a vice-presidente, fora das primeiras apostas de todos: um quase desconhecido “treinador” do Midwest, caçador, fora do circuito das Ivy Leagues de que todos os candidatos a Presidente foram alunos nas últimas décadas. Tim Walz esgotou bonés em poucas horas, com o seu padrão camuflado, alternativos aos “MAGAs” – “Make America Great Again” –, o slogan da candidatura rival. Foi encontrado um candidato para um novo centro/coligação, no ex-congressista e Governador do Minnesota, com um currículo de conquistas também progressistas, que abre portas para chegar a eleitorados cruciais para Harris vencer em novembro.

A atual VP beneficiou de uma circunstância histórica única com a desistência de Joe Biden naquele momento e daquela forma: o tweet de desistência é que foi o tiro certeiro na campanha de Donald Trump, que subia e alargava força e era o homem que se levantava do chão para vencer todos. A saída de Biden cortou o ciclo mediático e trouxe uma história nova, no momento certo. Para além disso, permitiu a Harris, deliberadamente ou não, ser a primeira candidata em décadas a não ter de passar por um processo das eleições primárias do partido, que inevitavelmente a “encostariam” a alas mais progressistas ou centristas, “perdendo” partes do partido (passe-se a redundância) e chegando mais enfraquecida a este momento. Assim, a convenção de agosto dos democratas foi de festa maior e união incontestada, com todos os antigos rivais (de 2020) a virem discursar ao seu lado e tentar encontrar um tom otimista e animado, que vamos ver se se mantém.

Regressando à noite de há vinte anos, a 27 de julho de 2004, a do momento-surpresa que baralhou as apostas políticas nos EUA: Obama, recém-eleito numa eleição intercalar de março, recebeu a oportunidade de ser keynote speaker numa das noites da Convenção Democrata que nomeou John Kerry para ser candidato a presidentePdos EUA contra um George W. Bush ainda portador da “bandeira americana” pós-11 de setembro. Kerry perderia por várias razões, entre elas por não ser um “candidato de união” ou “suprapartidário” como, apesar de tudo, foram Trump em 2016 ou Biden em 2020 (que “transcenderam as “bolhas eleitorais” dos respetivos partidos – atingindo os tais “eleitores médios”).

Barack Obama, então quase desconhecido, deslumbrou ainda antes de chegar ao palco da Convenção, ao ponto de Kerry lhe roubar partes do curto discurso (meros 20 minutos – compare-se isso com os longos discursos de 2024!), quando o leu no ensaio, reconhecendo o brilhantismo daquele que viria a ser tido como um dos maiores oradores políticos dos nossos tempos.

Com força e ritmo, afirmou, então: “Os especialistas gostam de dividir o nosso país em estados vermelhos e estados azuis - estados vermelhos para os republicanos, estados azuis para os democratas. Mas tenho notícias para todos: nos estados azuis, adoramos um Deus maravilhoso e, nos estados vermelhos não gostamos de ter agentes federais a bisbilhotar as nossas bibliotecas. Treinamos ‘Little Leagues’ nos estados azuis e, sim, temos alguns amigos gays nos estados vermelhos”. Quatro anos depois, no discurso de vitória final (depois de outro brilhante discurso de derrota – também são bonitos, quando são bons) de John McCain, Obama retomou a ideia: “Os americanos enviaram hoje uma mensagem ao mundo. Nunca fomos apenas um conjunto de indivíduos ou um conjunto de estados vermelhos ou estados azuis. Nós somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América”.

Parece-me que esta ideia-chave é essencial para tentar entender os EUA. Ao contrário do que Obama e outros grandes oradores (como Reagan, JFK, até Nixon ou Lyndon Johnson – que conseguiram vitórias expressivas) nos tentam fazer crer, os EUA são pouco “unidos” e são fruto de consensos difíceis e divisões profundas. Basta lembrar o dia da independência, 4 de julho, o dia da morte do 2.º e 3.º Presidentes, Adams e Jefferson, que durante toda a sua vida política ativa defenderam conceções diametralmente opostas para a federação, pretendendo mais poderes mais centralizados ou estados mais autónomos; ou lembrar Hamilton e Madison, que, juntos, escreveram os Federalist Papers com ideias completamente diferentes; ver os estados do norte ou do sul, do este ou do oeste, a Guerra Civil; a luta pelos direitos civis; há inúmeras marcas e nomes que revelam que nunca mais houve um Presidente como o silencioso General Washington, que reuniu todos aqueles Founding Fathers em torno de um ideal. Nem Lincoln levou o seu “Governo de Rivais” até ao fim.

Ainda há hoje, nos EUA, homens que tentam “federar”. Enfrentando o então presidente Trump, o Chief Justice (presidente do Supremo Tribunal) John Roberts Jr., nomeado pelo presidente W. Bush, defendeu: “Não temos ‘juízes Obama’ ou ‘juízes Trump’, ‘juízes Bush’ ou ‘juízes Clinton’… O que temos é um grupo extraordinário de juízes dedicados e que dão o seu melhor para fazer o que é justo para aqueles que se apresentam perante si. Este poder judicial independente é algo pelo qual todos devemos estar gratos”. É certo que a independência, autonomia e características do Tribunal também estão em crise, mas o institucionalismo de Roberts é uma das maiores possibilidades de segurança em tempos incertos. Ele quer defender o seu tribunal e quererá enfrentar um presidente em funções, como outros Chief Justices fizeram, desde o espetacular John Marshall.

Defender que o lado rival é um conjunto de wokes, de radicais (num sentido ou noutro), de weirdos, um “basket of deplorables” (o “cesto de deploráveis” que Hillary chamou a apoiantes de Trump em 2016 é hoje um insulto leve quando comparado ao que apoiantes de ambas as campanhas têm chamado aos oponentes!). E Trump não passou, em 2016, nos EUA, a imagem de extremista que, na Europa, mais lhe associamos, ao contrário do que podemos pensar: vejam-se aspetos como o facto de ter apoiado, no passado, candidatos democratas ou ter sido crítico da guerra do Iraque, e ainda ter afirmações q.b. moderadas quanto ao aborto (ainda agora, o que defende é que deve ser uma matéria tratada pelos estados e que não está regulada na Constituição, como a maior parte dos constitucionalistas defenderam desde a decisão do Supremo Tribunal, mesmo juízes liberais, afirmando publicamente, contra muitos correligionários, que o aborto deve ser aceite em muitas situações). Talvez as afirmações de Trump e a sua prática enquanto “homem de negócios” efetivamente racistas o pudessem ter excluído, mas nem os candidatos republicanos nem Hillary souberam/conseguiram explorar essas fragilidades, nem parecem ser as divisões que a América quer aprofundar.

Para quem queira fazer o papel de “advogado do diabo” e encontrar posições contrárias, senão contraditórias, conseguirá também encontrar no historial de Harris como procuradora a defesa de uma política de “lei e ordem”, propondo condenações fortes e mais severas (mesmo para determinadas categorias de indivíduos mais frágeis) do que muitos rivais republicanos e, agora, a adotar uma posição de “falcão” belicista que, nos exatos vinte anos que passaram, antes mais rapidamente associaríamos aos republicanos. Por outro lado, pela forma individualista como cresceu entre os republicanos, Trump está menos refém da indústria do armamento ou outras e ao longo do seu mandato adotou políticas de incentivos fiscais, mesmo para os mais desfavorecidos. Apesar da sua oratória, tem muito mais de moderado do que podemos pensar, quando dissecados os atos do seu governo. Sim, será sempre um líder inesperado e imprevisível, com tudo o que isso pode significar de bom e do seu contrário, mas implica que rivais e líderes de nações rivais não sabem com o que contar... Para já, tentou usar o dia depois da Convenção Democrata para expor a desistência e o apoio de Robert Kennedy, que poderá ter uma relevância percentualmente pequena, mas não irrelevante, e tentará apelar a esta “realeza” democrata, cruzando eleitorados.

Curiosamente, parece-me engraçado identificar uma das marcas do discurso que se alterou com o nome do candidato democrata: para Biden e os seus apoiantes, Trump era temerário e a sua eleição representava um perigo para a América, isso fazia-o aumentar em importância e peso – era uma posição que o próprio gostava de ocupar, pela sua personalidade, mas também era um lugar mais forte. Um Trump perigoso fazia de Biden mais pequeno e era, potencialmente, um líder mais desejado; para Harris, Trump tem sido ridículo e risível e isto, naturalmente, diminui-o e deixa-o desconfortável. A campanha republicana, estranhamente, não estava preparada para a possibilidade da desistência de Biden e aparentemente ainda não conseguiu mudar as velas ao barco, tendo Trump dificuldade em enfrentar esta nova estratégia.

Estas duas estratégias democratas lembram-me dois feitiços (que aqui tento explicar) usados nas aulas do Harry Potter contra os seus inimigos: (i) o Riddikulus, um feitiço usado para derrotar Boggarts, criaturas que mudam de aspeto, assumindo a forma do pior medo de uma pessoa. O Riddikulus transforma o Boggart em algo cómico, permitindo que a pessoa enfrente e supere seu medo através do riso; e o (ii) Expecto Patronum, um feitiço especificamente concebido para conjurar um Patronus, que é uma espécie de animal/amuleto protetor que pode repelir Dementors, que se alimentam do desespero e medo das pessoas, e o Patronus representa emoções positivas, especialmente lembranças felizes. É uma poderosa defesa contra a natureza sombria e opressiva dos Dementors.

Não me parece que a vitória de Harris e Walz contra Trump possa passar pela insistência no Riddikulus e julgo que a mensagem que Obama veio trazer foi essa: tem de se insistir num Expecto Patronum. Apesar de tudo, os slogans “Yes, We Can” ou “Make America Great Again” têm várias coisas em comum: valem por si, não menorizam necessariamente o adversário, lembram-nos de coisas boas e apelam ao eleitor médio, à América que não é nem vermelha, nem azul, nem branca, nem negra, nem asiática, nem latina, nem de tantos outros cantos. Há milhares de “eleitores médios” que têm de ser seduzidos até novembro e este verão quente e histórico (atentado, desistência, novos candidatos – tanto Vance como Walz têm características que mereceriam um texto próprio) foi só um prelúdio. Temos debates pela frente e a eleição é só, como sempre desde as primeiras eleições, na primeira terça-feira de novembro, depois de terminarem as colheitas. Vamos ver o que Trump e Harris conseguem semear.

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