Opinião

A República dos procuradores

A República dos procuradores

Rui Lage

Escritor, ex-deputado do PS

Se o poder judicial, através do Ministério Público, previne e sanciona as derivas do poder legislativo e do poder executivo, quem previne e sanciona as derivas do poder do Ministério Público?

A expressão “separação de poderes” impôs-se no nosso imaginário democrático com a força de um mandamento. Todavia, se remontarmos aos escritos de Montesquieu, o patrono originário desse princípio, vemos que ele não usava a palavra “separação”, que sugere uma demarcação intransponível, mas as palavras “divisão” e “distribuição”. Para Montesquieu, não se tratava de separar rigidamente os poderes, para que fossem invulneráveis uns face aos outros, mas de proporcionar que cada poder pudesse prevenir a deriva dos outros poderes. O objetivo era atingir um equilíbrio de forças, uma harmonia, ainda que tensa, através da colaboração e da vigilância mútua. O texto da nossa Constituição é legatário desse entendimento, pois articula a “separação” com a “interdependência” dos poderes.

Mas se o poder judicial, através do Ministério Público, previne e sanciona as derivas do poder legislativo e do poder executivo, quem previne e sanciona as derivas do poder do Ministério Público? Quem dissuade o abuso de poder daqueles que investigam o abuso de poder? Se os procuradores são exclusivamente controlados por procuradores, então ninguém controla os procuradores. O autocontrolo é um dom distribuído com parcimónia. E é sempre periclitante. Não vivemos numa qualquer república de filósofos-reis. Vivemos, ao que se vai vendo, numa República dos Procuradores.

Das reações corporativas ao “Manifesto dos 50 por uma Reforma da Justiça em Defesa do Estado de Direito Democrático”, sobressai o pressuposto de que um sistema de justiça independente só pode existir com um modelo de Ministério Público investido de uma autonomia radical face ao poder executivo, como o português. Por essa lógica, a França seria um Estado de Direito democrático falhado, já que neste país o Ministério Público é autónomo mas não é independente do poder executivo, estando sujeito à autoridade do Ministro da Justiça, o qual produz instruções gerais sobre o exercício da ação penal. E falhado seria também o Estado de Direito na Espanha, na Suécia, na Alemanha e no Reino Unido, onde também não há independência daquele órgão judicial face ao Governo. Contudo, nos rankings internacionais que aferem a qualidade do Estado de Direito, Portugal fica atrás da França, bem como atrás da Espanha. E continua abaixo da média da UE no Índice de Perceção da Corrupção. Não obstante, a ideia de que o atual grau de autonomia do Ministério Público é uma fatalidade assolapou-se na consciência nacional. É uma noção que paralisa os legisladores e aproveita aos procuradores. É bem menos certo que aproveite à democracia e ao desenvolvimento do país.

Há cinquenta anos, a polícia política devassava a correspondência privada para criminalizar os opositores políticos. A informação intercetada era mantida secreta, porque o segredo era a alma do negócio. Hoje, a alma do negócio parece ser a publicitação das comunicações entre políticos. E o negócio é a sua criminalização mediática.

Mas o que está em causa não é somente a devassa infundada da vida de políticos que também são sujeitos de direito, nem o trespasse arbitrário das suas conversas privadas aos órgãos de comunicação social. Está em causa a liberdade dos políticos legitimamente formarem e tomarem decisões políticas em prol do interesse público e em coerência com os seus compromissos programáticos. É que, na República dos Procuradores, é possível congelar ou mesmo frustrar investimentos estratégicos para o país com base em suposições estultas, valorações exageradas ou interpretações desastradas de conversas e encontros.

Na República dos Procuradores, não são apenas os políticos que estão sob ataque. São também as suas decisões políticas e, logo, a autoridade da esfera política. Se a defesa da legalidade no chamado caso “Influencer” é dúbia perante os indícios conhecidos, a defesa do interesse nacional foi para o maneta. Ou será do interesse nacional que avultados investimentos na fileira das renováveis fiquem possivelmente feridos de morte a pretexto de interpretações inábeis ou perversas do que seja a influência política?

Nas Cortes Constituintes de 1821, parteiras do constitucionalismo português, não havia figura mais admirada e citada que Montesquieu. O nosso Montesquieu foi Manuel Fernandes Tomás, que escrevia, em artigo de 9 de Março de 1822, que cada um dos poderes constituídos deve “auxiliar os outros poderes com toda a força, que cabe na ação de cada um; e remover todos os estorvos, que possam empecer, e paralisar qualquer das operações dos outros poderes”. Talvez possamos meditar estas palavras do pai do nosso constitucionalismo.

Com lucidez, Fernandes Tomás advertia para “as perigosas consequências” que podiam advir da perturbação do “acordo regular entre poderes” e da semente de discórdia que nascia da “desautorização de qualquer deles” e da “desconfiança introduzida a respeito das suas operações”. Se a desconfiança nas operações do poder executivo e do poder legislativo é hoje ardilosamente amplificada pelos populistas, com a cumplicidade dos média, a desconfiança a respeito das operações do Ministério Público é da exclusiva responsabilidade dos seus magistrados, que se portam, nalguns casos, não como detentores de um poder mas como agentes de um anti-poder. E eis como, na República dos Procuradores, a separação de poderes dá lugar à delapidação dos poderes.

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