Opinião

Uma política dos gestos bombásticos

Uma política dos gestos bombásticos

Michael Marder

Filósofo e professor universitário

A destruição da capa da Carta da ONU no edifício da Assembleia Geral em Nova Iorque, ou a libertação de uma pomba branca numa sessão plenária do Parlamento Europeu, são performances adequadas na era das notícias clickbait e memes. A degradação da esfera pública anda de mãos dadas com a destruição dos ecossistemas e a evisceração do bem comum.

Dois gestos políticos foram observados recentemente no cenário mundial. No dia 10 de Maio, Gilad Erdan, embaixador de Israel na ONU, destruiu a capa da Carta da ONU no edifício da Assembleia Geral em Nova Iorque, enquanto, apenas três semanas antes disso, o eurodeputado eslovaco de extrema-direita, Miroslav Radačovský, tinha libertado uma pomba branca numa sessão plenária do Parlamento Europeu, em Estrasburgo.

Estas performances são bastante adequadas para a era das notícias clickbait e memes que se tornam virais nas redes sociais. Mas o que dizem eles sobre a natureza da política hoje?

As queixas sobre uma degradação constante da esfera pública dão a aparência de lamentos conservadores, ressurgindo em cada nova geração.

Será realmente verdade que as coisas eram muito melhores (mais dignas, mais ponderadas…) no passado, em comparação com a atual moda de populismos paroquiais que se opõem aos “globalistas” tecnocratas?

Não estamos a imaginar uma falsa Idade de Ouro e a construir uma narrativa da queda daquela condição perfeita até aos trágicos absurdos do século XXI?

Embora existam várias definições do político, aquela que encontramos nas obras de Hannah Arendt destaca-se pela sua universalidade e relevância contínua. Para Arendt, a base da política institucional é a experiência do político.

Tal como aconteceu com Aristóteles, esta experiência vai ao cerne do significado de ser humano: sinaliza nada menos do que o nosso “segundo nascimento”, que surge após a nossa aparição biológica no mundo no caso do “primeiro nascimento”. Mais concretamente, a experiência do político é a de estar com os outros humanos graças as palavras e ações partilhadas.

A versão daquilo que se considera como política segundo Arendt é ao mesmo tempo muito comum e altamente incomum: é uma característica da vida cotidiana que não envolve partidos nem parlamentos e é uma ocasião rara em que as palavras realmente importam e quando a união com outras pessoas produz um feito, elevando cada uma (se apenas momentaneamente) de sua imersão desatenta em assuntos privados.

Na verdade, os parlamentos são parlamentos – lugares onde o discurso (do verbo francês parler) é importante – só dado o enraizamento da instituição numa experiência verbal mais primordial do político.

Mais do que isso, a abordagem política de Arendt também não é ideologicamente limitada, visto que ela se abstém de determinar o propósito do discurso e da ação, que podem ser direcionados para causas seja de direita ou de esquerda.

Com a política reduzida a gestos espetaculares, assistimos ao eclipse de tudo o que motiva e continua a impulsionar o político. Gestos que não são exatamente discursos e não são exatamente ações, fecham o espaço para o envolvimento político. Neste seu efeito os gestos unem forças com a racionalidade tecnocrática e a governação algorítmica, com as quais os populismos colidem abertamente.

Adquirem um significado desproporcional porque ocorrem dentro dos muros de instituições políticas veneráveis, mas também minam essas mesmas instituições, bem como o campo da vida política, descrito por Arendt com grande precisão. Numa palavra, então, os gestos políticos são paradoxalmente antipolíticos.

Bombásticos, chamativos e abreviados, tais gestos são impedimentos para pensamento, da análise e da interpretação. Ao nível mais superficial, são irreflexivos no que diz respeito às suas consequências imediatas e materiais.

O que acontece com a pomba assustada, solta num grande espaço interior? Que mensagem envia a destruição física da Carta da ONU no pódio da sede da ONU?

Levando esta última questão mais longe, é importante examinar as observações feitas pelo embaixador israelita imediatamente antes e durante o seu ato pretensioso. Erdan disse, dirigindo-se aos representantes de outros países, enquanto produzia um triturador de papel em miniatura: “Vocês podem ver o que estão a infligir à Carta da ONU com este voto destrutivo… Vocês estão a destruir a Carta da ONU com as suas próprias mãos”. Claro, era ele quem fazia o que criticava, e a trituração não era feita manualmente, mas por uma máquina.

Este foi, de facto, um caso claro de projeção psicológica – uma atribuição aos outros o seu próprio comportamento – e Erdan confirma este diagnóstico referindo-se à sua conduta como um “espelho” (embora o espelhamento não tenha funcionado da forma que ele pretendia).

Os gestos políticos pomposos, aos quais os líderes populistas e o seu círculo recorrem livremente, bloqueiam o trabalho de pensamento também ao outro nível. O discurso que acompanha esses gestos é totalmente absorvido na materialidade do ato, enquanto o ato em si não é uma ação conjunta, mas uma instância de atuação, um tique comportamental elevado a uma quase-universalidade.

Afinal, os gestos políticos podem ser copiados, executados por um grupo, parodiados, papagueados e, no entanto, não podem constituir um projeto realizado em conjunto.

Esta observação aplica-se igualmente aos protestos de ativistas que tendem a tornar-se cada vez mais gestuais, como os ataques dos manifestantes climáticos a obras de arte famosas em galerias e museus de todo o mundo.

O ataque gestual à palavra e à ação é sintomático de uma tendência mais ampla, em que estas são cada vez mais modeladas num gesto político – igualmente bombásticas, semelhantes a um meme ou destinadas a chocar.

Consideremos as declarações feitas pelo ex-presidente russo Dmitry Medvedev no seu canal de Telegram. Misturando ameaças frequentes de ataques nucleares com insultos pessoais contra líderes ocidentais e ucranianos, Medvedev opera exclusivamente com gestos políticos que se estendem e abrangem o registo verbal da linguagem. É neste quadro que o comportamento dos funcionários russos, desde os chefes do Ministério dos Negócios Estrangeiros até ao próprio Vladimir Putin, deve ser examinado.

A escolha entre o populismo de direita e a tecnocracia neoliberal, que surge consistentemente nas campanhas eleitorais por todo o mundo, é falsa. De maneiras diferentes, as duas “alternativas” obliteram a palavra e a ação, sem as quais, segundo Arendt, os humanos seriam reduzidos a nada mais do que a sua aparência biológica no mundo.

Das arenas nacionais às internacionais, a degradação da esfera pública anda de mãos dadas com a destruição dos ecossistemas e a evisceração do bem comum, irredutível a interesses privados ou de grupos. Se for possível ainda salvar o que seja da devastação global, devemos começar por remendar palavras e atos partilhados, irredutíveis a gestos bombásticos e vazios.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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