No dia 9 de março, o Papa Francisco deu uma entrevista ao Corriere della Sera que alimentou um debate controverso acerca do seu posicionamento no respeitante à guerra na Ucrânia. Questionado acerca da possibilidade de resolução do conflito, o Santo Padre apelou a um hastear de bandeira branca por parte da Ucrânia, gerando uma onda de indignação justificada pela forma como, intencionalmente ou não, Francisco pareceu colocar uma espécie de ónus da responsabilidade na liderança ucraniana. “O mais forte”, afirmou, “é aquele que tem a coragem de usar a bandeira branca e negociar. (...) As negociações nunca são uma rendição. (...) Não tenham vergonha de negociar antes que as coisas piorem”.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Kiev foi o primeiro a manifestar desagrado, com o ministro Dmytro Kuleba a fazer a um lembrete irónico, mas verdadeiro e pertinente, na rede social X: a bandeira ucraniana não é branca, mas azul e amarela. Na Polónia, o tom do comentário do ministro Radek Sikorski não foi mais simpático: “Que tal, para equilibrar, encorajar Putin a ter a coragem de retirar o seu exército da Ucrânia? A paz aconteceria imediatamente sem a necessidade de negociações.”
Por toda a Europa, foram duras as críticas a este apelo quase unanimemente considerado muito parcial. Mas, do ponto de vista formal, o que é que há de anormal nas declarações do Papa?
Francisco é simultaneamente um líder religioso – o da Igreja Católica, – e um chefe de Estado – o do Vaticano. Certamente, não é a primeira vez, nem será a última, que este estatuto dual o coloca diante de dilemas como este sobre a guerra na Ucrânia. Enquanto chefe espiritual e agente da paz no mundo, o seu papel é o de apelar ao calar das armas e à negociação em tempo de conflito; enquanto chefe de Estado, porém, caber-lhe-á, como aos seus homólogos, fazer uma leitura realista das motivações e das circunstâncias que conduziram à guerra, para, então, refletir com justiça acerca de uma negociação para a paz.
As declarações de 9 de março do Papa Francisco coadunam-se perfeitamente com o primeiro destes dois papéis, porque é natural e quase obrigatória a sua chamada de atenção para a necessidade urgente de alcançar um entendimento entre russos e ucranianos. O que colide frontalmente com esta chamada de atenção é a ausência de um enquadramento histórico, geopolítico e legal sobre o deflagrar desta guerra: quem iniciou o conflito? Quem é o agredido? E o agressor? Que objetivos motivam o agressor?
Estas questões mereciam uma reflexão mais ponderada por parte do Sumo Pontífice, desta feita na sua qualidade de chefe de Estado. Neste segundo domínio, a condição religiosa, espiritual, de Francisco não pode constituir elemento-cegueira para um conjunto de condições e indícios que fazem da guerra na Ucrânia um absurdo exclusivamente resultante dos caprichos imperialistas de um homem que não respeita a História, nem a geografia.
O Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, também comentou as declarações do Papa, e fê-lo no mesmo sentido do senhor Kuleba, embora de forma menos emocionada: “O que acontece à mesa de negociações está indissociavelmente ligado ao campo de batalha.” O que isto significa é que a solução para o conflito jamais poderá descurar uma consideração séria acerca da origem do mesmo, a saber: a Rússia invadiu a Ucrânia; a Rússia apropriou-se de território ucraniano; a Rússia matou militares e civis ucranianos; a Rússia destruiu património ucraniano; a Rússia abalou a paz europeia e mundial.
Para além de uma profunda injustiça, seria mesmo irresponsável incentivar a Ucrânia a hastear uma bandeira branca perante uma potência agressora com pretensões imperialistas. Porquê? Porque, para Putin, uma bandeira branca seria sinónimo de luz verde para avançar Europa dentro. Isto diz automaticamente respeito a todos os europeus, não apenas aos ucranianos. E é o próprio Stoltenberg quem faz o alerta: “Não é o momento para falar sobre a rendição dos ucranianos. Isso seria uma tragédia para os ucranianos e um perigo para todos nós.”
A Alemanha, na pessoa do seu Embaixador na Santa Sé, Bernhard Kotsch, também acompanhou o ímpeto da ferocidade ucraniana e polaca: “A Rússia é o agressor e está a violar a lei internacional! Por isso, a Alemanha pede a Moscovo, e não a Kiev, que acabe com a guerra”.
Não existem dúvidas sobre o abalo diplomático causado pelas declarações de Francisco, nem mesmo para o Vaticano, que veio corrigir o que muitos interpretaram como uma narrativa legitimadora da lei do mais forte e alheia ao direito internacional. Mas nem esta correção parece ter surtido grande efeito, na medida em que não se distancia suficientemente das declarações originais e polémicas do Papa para que possamos considerar que o Vaticano reconhece de modo efetivo a inconveniência, como o perigo, a estas declarações associados.
No dia seguinte à dita entrevista, o Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Pietro Parolin, tentou esclarecer: “O apelo do Pontífice é que sejam criadas as condições para uma solução diplomacia em busca de uma paz justa e duradoura. Nesse sentido é óbvio que a criação de tais condições não cabe apenas a uma das partes, mas sim a ambas, e a primeira condição parece-me ser precisamente a de pôr fim à agressão.”
Mas, senhor Cardeal, a paz na Ucrânia cabe, sim, a uma das partes: à agressora.
O porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, também tentou colocar água na fervura, porventura com mais sucesso do que o Cardeal Parolin. Segundo explicou, o Papa Francisco limitou-se a recuperar uma expressão originalmente usada pelo jornalista, que lhe perguntou, segundos antes da resposta controversa do Pontífice: “Na Ucrânia, há quem peça coragem para a rendição, para mostrar a bandeira branca. Mas outros dizem que isso legitimaria os mais fortes. O que pensa sobre isso?”
Com a expressão “bandeira branca”, acrescentou Bruni, o Papa referia-se a uma cessação de hostilidades e a uma trégua alcançada com a coragem da negociação. No mesmo esclarecimento, o porta-voz do Vaticano adicionou uma nota apaziguadora acerca da atitude do Papa ao longo dos mais de dois anos de guerra na Ucrânia, que frisou ser uma atitude de preocupação e afeto sobre o povo ucraniano martirizado (valha isto o que valer, depois da polémica instalada).
Este assunto tem sido de tal forma badalado que já motivou alguns especialistas em questões religiosas a refletir acerca de um conjunto de soluções que possam evitar este tipo de mal-entendidos. Parte destes pensadores acredita que o Papa pode sair prejudicado pela forma mais pessoal e não premeditada como se dirige aos fiéis, diretamente ou através dos jornalistas. As suas entrevistas não são discursos formais, muito menos encíclicas, e deixam, por isso, as intenções originais de Francisco à mercê da naturalidade com que lhe saem as palavras (não ensaiadas).
Isto pode servir para atenuar a onda de indignação que assolou a Europa e o Ocidente depois das declarações de Francisco a 9 de março, mas não serve para evitar que o Kremlin aproveite, como já aproveitou, para estabelecer uma ponte entre o altruísmo religioso papal e a retórica da vitimização russa. A reação do porta-voz russo, Dmitri Peskov, pode confirmar este raciocínio: "Infelizmente, tanto as declarações do Papa como as repetidas declarações de outras partes, incluindo a nossa, têm recebido recusas absolutamente duras”.
Colmatar estes inconvenientes poderia passar pela adoção de um mecanismo de triagem documental e noticiosa, materializado na figura de um agente intermediário entre os media e o Papa, por exemplo. Esta é, aliás, uma das soluções propostas pelos especialistas supramencionados. Mas a naturalidade e proximidade tão caraterísticas das intervenções de Francisco estariam altamente comprometidas se assim fosse. Em duas linhas, este é o principal dilema associado ao estatuto dual do Papa.
Em suma, trata-se de um erro analítico, para não dizer ético, sugerir que a Ucrânia pode ou deve fazer mais pela paz. E não é pouco católico dizer que o caminho para a paz, neste momento, passa por continuar a ajudar, militar, material e logisticamente os ucranianos. É que a paz justa não é uma paz qualquer: é a independência, a soberania e a integridade territorial da Ucrânia intactas.