Opinião

A propósito da Madeira (e não só)

A propósito da Madeira (e não só)

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

Estabeleceu-se, portanto, um sistema de vasos comunicantes, em que a investigação sobre um político (isto é, algo que pode, eventualmente, vir a ter consequências em termos de responsabilidade criminal), desencadeia automáticos efeitos no que toca à sua cessação de funções (ou seja, conduz à imediata responsabilidade política)

Cena um - Cento e cinquenta inspectores e especialistas da Polícia Judiciária; dois aviões da Força Aérea; mais de cento e trinta buscas por todo o território nacional; o costumeiro acompanhamento mediático, em directo, da operação; um Presidente de Câmara Municipal que renuncia ao mandato; um Presidente do Governo Regional que se demite.

Cena dois – seis dias depois das detenções de três arguidos iniciam-se as respectivas audições; no dia seguinte, os seus advogados são chamados “de urgência” ao Tribunal, ao que parece porque as provas indicadas pelo Ministério Público já deveriam estar todas à disposição da defesa aquando do início daquela diligência e, afinal, não estavam; as detenções prolongaram-se por vinte e um dias.

Cena três – no seu despacho, o juiz de instrução considera não existirem indícios, muito menos fortes indícios, de os três arguidos terem incorrido na prática de um qualquer crime; em consequência, determina a sua libertação, apenas com termo de identidade e residência (que alguns especialistas em direito penal questionam se será, até, uma verdadeira medida de coacção, ao menos no sentido das demais, uma vez que é sempre aplicada, independentemente das necessidades especiais de cada processo).

Cena quatro – a Procuradoria-Geral da República emite um comunicado em que defende a operação; em simultâneo, porém, critica publicamente o juiz de instrução – já agora, relembre-se, titular de um órgão de soberania, coisa que os magistrados do Ministério Público não são -, em vez de, como lhe seria exigível, guardar a sua argumentação para o recurso que anunciou ir interpor.

Cenas muito inventivas de uma peça de teatro ficcionada? Não. A realidade, infeliz e intolerável, daquilo que se passou na Madeira desde o dia 24 de Janeiro.

No plano jurídico, a procissão, como diz o povo, “ainda vai no adro”. Na sequência do recurso do Ministério Público, pode suceder que a decisão do juiz de instrução seja alterada; é possível que venha a realizar-se um julgamento; caso ocorra, uma decisão, condenatória ou absolutória, terá de emergir; recursos seguramente se seguirão.

Estamos, pois, muito longe do apuramento final da verdade. Mas é como tantas vezes sucede no desporto: quem marca um golo festeja, quem o sofre, queixa-se do árbitro.

Em todo o caso, há perplexidades que têm de ser enunciadas.

Era necessário montar a maior operação logística de sempre em matéria de investigação, como se estivéssemos perante uma associação criminosa de elevada dimensão e complexidade ou face a uma tenebrosa organização terrorista?

É aceitável que alguém esteja detido três semanas? É que a Constituição impõe que a detenção tem de ser submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa. E isso não deve ser reduzido a uma mera formalidade de identificação, que, cumprida, permite manter alguém em situação de privação de liberdade por tempo prolongado.

Vamos continuar a assistir, perante a total passividade do aparelho judicial, às sistemáticas quebras do segredo de justiça, sempre no mesmo sentido – o de promover julgamentos populares dos suspeitos ou dos arguidos que, mesmo quando são absolvidos, muito dificilmente se livrarão do labéu que sobre eles é assim lançado?

Mas o que agora sucedeu na Madeira – e tem ocorrido em muitos outros casos - merece, também – ou melhor, exige – uma reflexão no domínio político.

Generalizou-se, entre nós, a concepção de acordo com a qual referências feitas a um político no âmbito de uma investigação criminal (ou mesmo a abertura de um processo relativamente a ele) e ainda que nenhuma acusação concreta exista e, muito menos, uma pronúncia, deve ter imediatas consequências no que toca à sua permanência nas funções que desempenha. E tanto assim é, que os próprios se sentem normalmente na obrigação de se demitir.

Dito de outra forma: a presunção de inocência, valor fundamental do Estado de Direito, que a Constituição, aliás, expressamente consagra, pelos vistos não beneficia os políticos.

E isto, nalgumas situações pelo menos, em contradição directa com a mesma Constituição, que, estipula, por exemplo, que um Deputado ou um membro do Governo só pode ser suspenso de funções após a sua acusação definitiva. E com a lei que determina a responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos, que aplica idêntica regra, com as necessárias adaptações, aos Deputados às Assembleias Legislativas Regionais e aos membros dos Governos Regionais.

Note-se: acusação definitiva, não mera suspeita ou, mesmo, constituição como arguido.

Estabeleceu-se, portanto, um sistema de vasos comunicantes, em que a investigação sobre um político (isto é, algo que pode, eventualmente, vir a ter consequências em termos de responsabilidade criminal), desencadeia automáticos efeitos no que toca à sua cessação de funções (ou seja, conduz à imediata responsabilidade política).

A diferenciação entre responsabilidade penal e responsabilidade política levou séculos a construir. E ela é de tal forma relevante, que um dos mais conhecidos constitucionalistas espanhóis – Luis Maria Diez-Picaso – não hesita em qualificá-la como um dos momentos estelares de toda a história do constitucionalismo.

Trata-se de uma regressão perigosa para a democracia. Porque conduz, inevitavelmente, a uma discussão sobre a questão da judicialização da política, mas, também, sobre a politização da justiça.

Conviria, assim, que todos - políticos, magistrados judiciais e magistrados do Ministério Público - parassem um pouco para reflectir sobre uma realidade que pode contribuir para danificar a imagem (e o estatuto) de isenção e de independência da magistratura, o que, a suceder, teria consequências incalculáveis.

E não, não se trata de qualquer tentativa de condicionar a actuação da justiça. Trata-se, tão só, de uma questão de bom senso.

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