Milei ou quando a ideia de Ocidente é a Argentina
Aquilo que foi metido na gaveta há mais de 40 anos em países como Portugal serve como slogan e arma política para os incautos. As palavras do presidente argentino têm eco
Comentador político, fundador e consultor de comunicação na GRiT Communication & Political Risk
Aquilo que foi metido na gaveta há mais de 40 anos em países como Portugal serve como slogan e arma política para os incautos. As palavras do presidente argentino têm eco
Não é novidade que por oposição ao ‘peronismo’ e a um tipo de socialismo que praticamente desapareceu em toda a Europa desde a década de 80, surgiu um ultra libertário no extremo contrário e com mais de trinta anos de atraso nas suas teses que prometem levar esse enorme país que é a Argentina a uma ruína completa.
Engradecido pelo palco de Davos e a ignorância galopante dos tempos, a notícia é que Javier Miliei decidiu dedicar grande parte do seu discurso ao Ocidente e à mundividência que tem a partir da sua realidade local. Claro que a iliteracia política ou económica de hoje é tanta que aquilo que foi mesmo metido na gaveta há mais de 40 anos em países como Portugal serve como slogan e arma política para os incautos. As palavras do presidente argentino têm eco. Ignora-se que a própria génese ou as políticas económicas exigidas pela União Europeia não permitem que nenhum Estado-Membro fique muito aquém de uma social-democracia, com maior ou menor pendor liberal e social.
Se é óbvia a necessidade de qualquer país em fomentar a economia empresarial nos vários setores, enquadrando-a com menos burocracia estadual, torna-se um insulto à minha geração que viveu uma crise financeira global e de proporções gigantes com causa-efeito num mercado desregulado, enaltecer o capitalismo a partir desse prisma. O populismo de Miliei é tanto que não perceberá que o livre arbítrio dos mercados e sem regulação, são outra fantasia para o descalabro, tal e qual ou pior que o peronismo que ele traslada para o Ocidente. O ataque ao Estado é também ele completamente desproporcional e envoltos numa espécie de bimby do discurso político para ignorantes. Não surpreende que o reflexo de qualquer dinamarquês, alemão ou norueguês, cujos países cresceram como nunca social e economicamente nas últimas décadas, com um número de funcionários públicos igual ou maior que Portugal em proporção, seja o de todo e qualquer desdém perante estas palavras. Pelo caminho do ultraliberalismo disparatado, quantas décadas serão precisas à bela Argentina para chegar ao que são estes países no que mais interessa para as populações? Pois.
Está na moda não se olhar para as conjunturas na política, ignorar especificidades e viver de catálogos de encomenda. Historiadores que olham para o crescimento económico das últimas décadas do Estado Novo em Portugal e passam ao lado propositadamente da realidade mundial única nesse pós-guerra. Incomparável a hoje ou ontem. Ou uma extrema-esquerda que critica a parte que não é reprovável nos anos do Passos Coelho e avalia um governo sob intervenção externa da mesma forma como avaliaria qualquer outro.
O contexto deixou de ser quase tudo e para os Miliei’s deste mundo nem interessa se vivemos uma era que as maiores economias do mundo se tornaram cada vez mais protecionistas e cimentadoras de um papel catalisador e estratégico do Estado. Haverá sempre a ressonância em Portugal de um Tiago Mayan a referir que a culpa é do ‘socialismo’ dos cartazes.
Mesmo que esse ‘socialismo´ já não exista há muito, não podia ser de outra coisa. Estupidifiquemos, mas é. Miliemos.
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