As marcas de luxo nacionais em Berlim e a conferência da Chanel e do LVMH em Lisboa dizem muito sobre o passado e o futuro do luxo português, escreve Catarina Nunes na crónica ‘Sem Preço’
Resisto à tentação de dedicar a última crónica do ano a refletir sobre os acontecimentos marcantes na indústria do luxo em 2023 ou a elencar as tendências para 2024. Não por falta de matéria para ambas as perspetivas. Melhor é aquilo que acontece num fio contínuo, que ‘cola’ o fim do ano com o início do próximo e que diz muito sobre o passado e o futuro das marcas de luxo nacionais.
Por estes dias é difícil pensar em luxo com ADN português sem o associar à queda aparatosa da Farfetch. Mas quando o primeiro unicórnio nacional já dava sinais de ter ‘a casa a arder’, em meados de novembro, cerca de 15 representantes de marcas e empresas de luxo nacionais fazem a primeira incursão internacional, organizados em torno da Laurel-Associação Portuguesa de Marcas de Excelência. À primeira vista pode parecer mais uma das inúmeras missões empresariais avulsas. A ida a Berlim, porém, representa o arranque de um plano setorial de afirmação do saber-fazer, criatividade e design nacionais, enquanto marcas globais e não como empresas exportadoras de produtos ou prestadoras de serviços subcontratados, como tem sido até agora.
A comitiva portuguesa em Berlim dá o arranque ao plano de afirmação do saber-fazer, criatividade e design nacionais
Marco Urban
O primeiro passo é dado em 2020, com o lançamento da associação que é impulsionada por Paulo Pereira da Silva, presidente da Renova, fundador e primeiro presidente da Laurel. É conhecedor do potencial português e dos caminhos a percorrer para tornar algo indiferenciado, como o papel higiénico, num produto e marca de luxo no seu segmento. O mérito é reconhecido com a procura internacional dos seus produtos, como com as vendas do caso de estudo da Renova publicado no INSEAD, que superam as do caso mais procurado na Universidade de Harvard, no ano em que é vendido pela primeira vez. Até hoje, é um dos casos de estudo mais vendido no mundo pela escola de negócios de Fontainebleau, em França.
Mas é em 2021 que se dá a circunstância decisiva para que a missão em Berlim aconteça e para que Lisboa acolha uma conferência, em janeiro de 2024, com os principais representantes das maiores marcas de luxo globais. Um ano depois da sua apresentação pública, a Laurel integra a European Cultural and Creative Industries Alliance (ECCIA), aliança que agrega as associações europeias que representam centenas de marcas de luxo e as indústrias culturais e criativas. Pense em qualquer uma das maiores marcas de luxo francesas, inglesas, italianas ou alemãs, por exemplo. Todas têm assento na ECCIA. Inclusive a Chanel e o Grupo LVMH, cujos administradores estarão a 19 de janeiro no auditório da Universidade Católica, em Lisboa, para debaterem os desafios dos pacotes legislativos para a sustentabilidade.
Em cima da mesa estarão as novas diretivas europeias relativas às embalagens (que têm de ser todas reutilizáveis ou recicláveis de forma economicamente viável) e ao design dos produtos (no que diz respeito à durabilidade, reutilização e reparação, por exemplo) e as suas consequências para as empresas. Francisco Carvalheira, secretário-geral da Laurel, é o cérebro e o operacional por trás da vinda desta conferência europeia para Lisboa e da ida a Berlim. Ambas possíveis de acontecer com a entrada na ECCIA, que dá às marcas portuguesas um palco onde são vistas e tratadas em pé de igualdade com as maiores marcas de luxo europeias, com as consequentes portas que se abrem e o aumento da perceção de valor e de oportunidades de afirmação. Por si só e por Portugal, enquanto país produtor de luxo e excelência.
Clemens Pflanz, presidente da associação alemã Meisterkreis, com Francisco Carvalheira, secretário-geral da Laurel
Marco Urban
Este é também o coração da Laurel, que quer reforçar o valor do passado, da tradição e da cultura portuguesas, desde os artesãos até às marcas já desenvolvidas, passando pelo futuro, por aquelas com potencial nacional e internacional ou que estão em fase embrionária. Neste caminho, o mais importante para Francisco Carvalheira são as pessoas. São elas que fazem a diferença.Não há marcas boas sem bons corpos diretivos e boas equipas. Na viagem a Berlim, o melhor de Portugal encontra-se com o melhor da Alemanha, representado na Meisterkreis, a associação local equivalente à Laurel, igualmente integrada na aliança europeia que reúne as pessoas e as marcas que defendem a excelência e a criatividade do saber-fazer.
A ideia desta viagem é pôr os associados da Laurel a trabalhar em conjunto entre eles e mostrar-lhes o que de melhor se faz na Europa em algumas áreas, contribuindo para a construção e comunicação das suas marcas a nível global. Neste desígnio, o estabelecimento de parcerias com as maiores marcas de luxo europeias é o objetivo, avança Francisco Carvalheira. Não foi preciso esperar que um ano passasse para que houvesse um balanço dos dois dias de encontros em Berlim e projetos fechados para 2024. A Leitão&Irmão, joalheiros desde 1822, vai desenvolver suportes em prata para peças em porcelana, em co-branding com a Königliche Porzellan-Manufaktur (KPM), instituída em 1763 para fabricar as porcelanas reais alemãs. Na mesma lógica, a Leitão&Irmão junta-se à aveirense Barmat, especialista em pedra portuguesa que vende em Nova Iorque na Restoration Hardware. O resultado? Peças que conjuguem pedra e prata.
Outra das marcas da comitiva portuguesa em Berlim é a Vista Alegre Atlantis que, apesar de já vender em mais de 70 países, ambiciona a globalização e espera desenvolver-se em parceria com a Porsche Design e Digital. A marca portuguesa de porcelanas e cristais, que celebra 200 anos em 2024, é sobejamente conhecida por colaborações internacionais e nacionais e esta viagem não foi precisa para se unir a Maria João Bahia. Numa parceria nascida dentro da Laurel, a histórica designer de joias acaba de conceber para a Vista Alegre Atlantis duas jarras em porcelana, uma com acabamentos em ouro e outra em prata, numa edição denominada ‘Movimentos’ e limitada a 25 peças cada. Apesar das joias e das porcelanas saírem em alta no co-branding, a incursão na excelência alemã dá frutos em outros setores.
É com as porcelanas alemãs da KPM que a Leitão&Irmão vai desenvolver produtos em co-branding
Marco Urban
Com vendas de 99,9% fora de Portugal, e por isto menos conhecida a nível nacional do que lá fora, a Innuos vai integrar as soluções de papel-cartão da alemã Gmund nas embalagens dos seus servidores de alta fidelidade feitos à mão, no Algarve. A gigante alemã do papel manifesta também interesses comuns à Renova, por ambos desenvolverem produtos de papel diferenciados pela cor, mas é com a Rondinart que já está em marcha uma parceria. A marca de design de mobiliário de luxo feito à mão vai desenvolver candeeiros com o papel-cartão colorido da Gmund. A globalização da excelência do saber-fazer nacionais não vai ficar por aqui. A associação sueca da indústria do luxo tem prevista a vinda a Portugal com algumas das suas marcas, no próximo ano, abrindo-nos mercado no Norte da Europa.
O turismo, os novos residentes milionários e o imobiliário de luxo colocam Portugal no radar, mas para Francisco Carvalheira todas estas trocas que acontecem desde a fundação da Laurel, com a representação da excelência nacional junto dos seus pares europeus na ECCIA, têm consequências muito mais profundas e consequentes para as marcas e empresas portuguesas. Do lado das marcas de luxo internacionais qual é, afinal, o interesse nas insígnias nacionais? Clemens Pflanz, presidente da associação alemã Meisterkreis, diz que temos a criatividade e o saber-fazer manual que escasseia na Alemanha e na Europa. E que são a base e a matéria-prima do luxo.
Brindemos a nós, ao que somos, ao nosso melhor e ao que sabemos fazer. Até para o ano.