Opinião

Os problemas de género acompanham as mulheres refugiadas — um apontamento feminista

Os problemas de género acompanham as mulheres refugiadas — um apontamento feminista

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Se na vida corriqueira de qualquer mulher há sexismo — intensificando-se os problemas quando se junta o racismo, homofobia, transfobia, baixo poder económico —, em contextos de mais opressão, como no processo de fuga do seu país, procura de asilo e permanência em campos de refugiados, o sexismo sobe todos os patamares que há para subir

"For those of us who live at the shoreline
standing upon the constant edges of decision
crucial and alone
for those of us who cannot indulge
the passing dreams of choice
who love in doorways coming and going
in the hours between dawns
looking inward and outward
at once before and after
seeking a now that can breed futures
like bread in our children’s mouths
so their dreams will not reflect
the death of ours."
Excerto do poema “A Litany for Survival” de Audre Lorde.


“Não podemos falar de Feminismo sem falar de migrações.”
Ana Paula Cruz, Médica Sem Fronteiras.

O processo de fuga de um país por violência ou perseguição e a procura de asilo tem ainda mais camadas quando falamos da realidade de mulheres refugiadas. Com a genocídio pelo qual a Palestina está a passar, a cargo das forças militares israelitas, chegam-nos notícias alarmantes todos os dias, a toda a hora. Uma delas é que na Faixa de Gaza há cerca de 50 000 mulheres grávidas, encurraladas, sem os cuidados que necessitam. Ao ler esta notícia, lembrei-me de uma entrevista feita a Ana Paula Cruz, Médica Sem Fronteiras, mais conhecida por Lokas, no âmbito do projeto Enxoval, da Associação Pele, do qual estive encarregue das ilustrações. Este artigo nasce de uma longa conversa com a Médica Sem Fronteiras e ativista Ana Paula Cruz e partilha de experiências e referências sobre a realidade de mulheres que procuram refúgio na Europa.

Se na vida corriqueira de qualquer mulher há sexismo — intensificando-se quando se junta o racismo, homofobia, transfobia, baixo poder económico —, em contextos de mais opressão, como no processo de fuga do seu país, procura de asilo e permanência em campos de refugiados, o sexismo sobe todos os patamares possíveis.

Ninguém decide fugir do seu país em condições precárias por capricho. Quem procura asilo, fá-lo porque a violência a que está sujeita/o no seu país de origem é tão má, que só a mera possibilidade de poder encontrar uma forma de sobrevivência menos violenta já é melhor do que a morte certa ou o sofrimento extremo. É uma ação movida a desespero. Além disso, o direito ao asilo está contemplado na Carta dos Direitos Humanos.

Os problemas de género começam logo nas possíveis razões pelas quais as mulheres fogem do seu país onde se encontravam.

Quando a violência que te leva a fugir é a de género

A razão da fuga e procura de asilo é estar em risco de violência, a sofrer violência e, ou, ser vítima de perseguição num país que não assegura a segurança. Quando falamos de mulheres cis, há situações específicas a nomear:

Há mulheres que procuram asilo na Europa para que as suas filhas não sejam vítimas de casamento infantil;

Há mulheres que o fazem para não terem casamentos forçados;

Mães que fogem para que as suas filhas não sejam vítimas de mutilação genital (de África para a ilha grega de Lesbos, pelo Mediterrâneo, ou pela Turquia e depois para Lesbos);

Mulheres que sofrem de violência doméstica;

Mulheres e crianças que se vêem usadas como armas de guerra para intimidar o adversário, quer por meio de violações sexuais, quer através da tortura.

Na decisão da rota de migração a tomar, as mulheres têm de ter em conta o seu género. Há muitas mulheres que fazem este percurso sozinhas ou a sós com os seus filhos, já que é costume o marido ir primeiro e depois reagrupar a família. Neste contexto, as mulheres em migração escolhem as rotas tendo em conta os sítios com menor risco de serem violadas ou de serem sequestradas por redes de tráfico sexual de mulheres. Além disso, têm de escolher bem qual o meio pelo qual vão fazer a rota, tanto pelos perigos acima referidos, como por muitas vezes viajarem grávidas, com crianças e bebés. Desta forma, tendo em conta os recursos disponíveis, durante o trânsito, passam por diversos pontos de permanência: barco, carrinha de passador de migrantes, países intermédios.

Como é de conhecimento geral, este caminho, esta rota, é feita de forma ilegal. Ora, tendo em conta que o direito ao asilo está contemplado na Carta de Direitos Humanos da União Europeia, não é irónico como não são estabelecidas rotas seguras, constantes e legais de migração para as pessoas de outros continentes que buscam asilo na União Europeia?

Chegando à Europa, cada migrante em busca de asilo tem de passar por um processo moroso, complicado e segregador para conseguir o seu direito.

O processo no país de chegada

Há muitas pessoas que não conseguem completar o processo de migração, desaparecendo ou morrendo. Atualmente, há registo oficial de 59 415 pessoas desaparecidas em migração desde 2014 (sendo que 28 216, quase metade, aconteceram somente no Mar Mediterrâneo). Ao todo, em média, contamos cerca de 504 pessoas desaparecidas por mês, o que dá cerca de 17 por dia (desde 1/12014 até 31/10/2023 passaram 3591 dias). 17 pessoas que desaparecem por dia, em desespero, à procura de uma vida melhor. Só este ano, já se contam 2500 mortes de pessoas na travessia do Mediterrâneo. Mas as pessoas são pessoas, não são números. Só uma já seria demais.

Passando todo o percurso e chegando à Europa, nos sítios já marcados como chegada de rota migratória, alguém do governo identifica a pessoa. Aí, o migrante tem de requerer asilo por falta de segurança no seu país de origem. Se não enviarem as pessoas para trás — um risco real, os chamados pushbacks —, os migrantes têm de esperar, então, pela entrevista oficial de decisão para saberem se têm direito ao asilo ou não. Este processo pode demorar muitos meses. Enquanto esperam pela entrevista, as pessoas migrantes têm de ficar num campo de refugiados. Enquanto esperam pelo resultado da entrevista, têm de ficar num campo de refugiados. Depois disto tudo, ainda podem ser rejeitadas.

Ora, mediante este processo, Lokas refere que não há qualquer inclusão na sociedade em segurança, porque efetivamente não há nenhuma inclusão, há segregação: racial, económica e religiosa. Seria suposto encontrarem-lhes casas temporárias seguras, e não porem-nas ao Deus dará nos campos de refugiados.

Segregar pessoas é invisibilizar a sua história, é ignorar a sua existência. Mas elas existem, a atravessar o Mediterrâneo em desespero, a viver em tendas sem quaisquer condições mínimas.

E é aqui que entra a vivência na tenda, sendo uma mulher refugiada. Todas as pessoas migrantes, independentemente do género, orientação sexual, religião, são vítimas de alta segregação e opressão em campos de refugiados. E é precisamente este fator que gera ainda mais problemas. Como refere Lokas, “opressão gera opressão”. Neste sentido, o sexismo vivido pelas mulheres e a violência sexual e doméstica intensificam-se neste contexto, formando, assim, uma hierarquia de poder com várias camadas. Esta intensificação da hierarquia de género explica-se (não se justifica, atenção, apenas se explica) pelo facto de que os homens refugiados vêem a sua virilidade posta em causa, a sua independência, a sua capacidade de providenciar para a família, acabando por gerar ainda mais machismo.

Muitas vezes, numa só tenda, vivem cinco, seis pessoas: uma família inteira. Mesmo neste contexto, são as mulheres que ficam a cargo dos trabalhos domésticos e de cuidado e, por conseguinte, são as raparigas que vão menos à escola.

No seu dia-a-dia, as mulheres refugiadas têm de ter uma atenção maior nos caminhos que fazem, já que evitar zonas não iluminadas reduz o risco de violação.

Dentro do campo, têm um subsídio mínimo, quando têm. Consequentemente, não há qualquer dignidade menstrual: a prioridade é comer. As mulheres grávidas não têm cuidados básicos. Não há ecografias, não há vitaminas, não há o seguimento médico devido.

Como resultado da interseção deste contexto de segração com a violência de género, há, inclusive, tentativas de suicídio por parte de mulheres.

Antes de avançarmos para a maior opressão de todas, as fronteiras políticas, não posso deixar de referir a realidade das pessoas refugiadas da comunidade LGBTQ+, neste ambiente tão segregador e com falta de segurança: são vítimas de uma violência enorme sem haver lugares seguros para se protegerem, sem forma de se defenderem.

Um sistema opressor só gera mais opressão.

É urgente desobedecer

“Ninguém escolhe ser refugiado. A decisão de fugir e buscar asilo não é uma escolha fruto da vontade espontânea de ninguém, mas sim fruto da urgência da fuga a uma violência potencialmente ameaçadora da vida.” escreve Lokas, sobre alguns dos mitos em relação a pessoas migrantes e refugiadas.

Nenhuma mulher migrante deveria sofrer ainda mais opressão num campo de refugiados, por ser mulher.

Os direitos das mulheres não podem acabar com a sua entrada num campo de refugiados. A segurança das pessoas que estão em risco tem de estar à frente de tudo.

Ainda, é de referir a realidade de ativistas humanitários em missões de resgate no mar mediterrâneo, incluindo médicas e médicos sem fronteiras, que são acusadas/os de apoio à imigração ilegal e tráfico humano, por oferecerem cuidados de saúde primárias às pessoas que chegam à União Europeia em busca de asilo. Quando impomos ordens sem humanizar o problema, tratamos as pessoas como mera mercadoria numa alfândega.

Para terminar, houve uma frase da Lokas que me ficou sempre na memória depois daquela primeira entrevista, vinda dos seus cadernos de apontamentos: “em tempos como este não é só urgente resistir, é urgente desobedecer.”

E a desobediência começa com falarmos sobre isto.

Obrigada Lokas, obrigada a todos os Médicos Sem Fronteiras e obrigada a toda a gente que leu este artigo.

Foi feito um donativo aos Médicos Sem Fronteiras à data de publicação.

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Ilustração-poster das viagens humanitárias de Lokas e dos seus apontamentos.

Outras fontes de informação para além dos links disponibilizados ao longo do texto:

Por ser mulher: NÃO PODEMOS FALAR DE FEMINISMO SEM FALAR DE MIGRAÇÕES”, texto de Lokas, em Português e Inglês.

“Como gere a UE os fluxos migratórios?” — informação oficial da Comissão Europeia, em que se denota a instabilidade das opções e direitos oferecidos a pessoas em busca de asilo.

Links sobre pushbacks quando as pessoas em busca de asilo são enviadas para trás:

European Council on Refugees and Exiles, artigo de janeiro de 2023

The Guardian, artigo de maio de 2023

New York Times, artigo de maio de 2023

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