Portugal é, politicamente, um país deprimente. Em sede de discussão do Orçamento de Estado, esse documento supostamente estruturante da governação do país, eis-nos entregues a uma discussão inacreditavelmente estúpida: o aumento do IUC. Digo estúpida, pela importância que a coisa tem quando em contraste com outros temas, que um país que não fosse deprimente consideraria essenciais. Digo inacreditavelmente, porque a oposição se entregou a isso, qual cão de Pavlov, usando o seu tempo mediático cumprindo, precisamente, a voz do dono: a central de comunicação do PS.
Não que a carga fiscal em Portugal, esse vício socialista que, no lugar de simples colecta para financiar a justiça social, se transformou em instrumento de reeducação e castigo das massas, não seja merecedora de imperiosa atenção. Não que o esbulho fiscal em Portugal, esse cancro socialista que, no lugar de fonte de financiamento para um Estado justo, funcional e forte, se transformou na gula que alimenta um Estado injusto, disfuncional e gordo (pode-se fazer body shaming metafórico?), não seja merecedor de impiedosa oposição.
O problema é a curta visão, já para não lhe chamar ausência. O problema é que a discussão é, para usar uma expressão que inaugurou uma era, sempre "poucochinha".
Fui olhar para as prioridades estratégicas do OE. "O Orçamento de Estado elege como três eixos de ação em 2024 a valorização dos rendimentos, a promoção do investimento e a proteção do futuro": eis o que se lê na secção Prioridades Estratégicas do OE2024. Depois, num textinho do ensino básico, entre sugestões de operação de caixa e circunstancialidades, lê-se ainda que "Entramos, assim, em 2024 com a segurança de sabermos que continuaremos a trilhar um caminho prudente, atento às necessidades da nossa sociedade, e sempre com a ambição de continuar a construir um país mais rico, mais coeso, e mais inovador." Chamo a atenção do estimado leitor para o apontamento irónico-paradoxal: "com a segurança de sabermos que continuaremos a trilhar um caminho".
Os portugueses estão mais pobres (em comparação com os seus parceiros europeus, por exemplo em PIB per capita), a sociedade portuguesa está menos coesa (o colapso da resposta pública em áreas como a saúde ou a educação, penaliza os mais vulneráveis) e menos inovadora (com a aceleração de exportação de portugueses qualificados para o estrangeiro e diminuição da capacidade de atracção de estrangeiros qualificados para o país), mas o Governo continua a falar numa terra de leite e mel.
Zero ideias de futuro. Zero. Repito: operações de caixa, falsas proclamações e circunstancialidades. Uma indigência, aliás, a que no final da semana o Primeiro-Ministro deu voz, numa qualquer convenção de camaradas, debitando um chorrilho de tautologias ocas que fariam corar de vergonha até o ex-primeiro-ministro Guterres: “Ter contas certas é ganharmos a liberdade de podermos fazer o que é necessário fazer quando é mesmo necessário fazer"; ou "Isso significa também não gastar tudo o que há para gastar quando podemos não gastar tudo o que há para gastar." E quanto à galvanizante visão de futuro, quanto à estratégia: "Sim, podíamos gastar tudo agora, mas seria irresponsável em relação ao futuro, porque o país vai precisar de manter uma forte trajetória de investimento público" ou "como não conhecemos o dia de amanhã precisamos de criar já hoje reservas para que, no dia de amanhã, seja possível prosseguir o reforço do investimento público”. Não se aproveita nada daqui. Nem o português.
E, porém, os portugueses namoram com o PS há longos anos e casaram com este PS há 8. Têm um casamento estável. Com o que conhecem. Certo e ponto. Serve e pronto. É compreensível e bom. Pode lá um conservador pensar de maneira diferente? As mudanças, para um conservador (estou a falar de mim, e dos meus leitores mais fiéis), rumo ao desconhecido raramente auguram algo de bom. Mas, num país repleto de conformados com o possível, se queremos salvar o futuro, talvez não fosse má ideia inovar, abrindo espaço, convidando viciados no impossível, gente capaz de transgredir fronteiras.
Falo de quê? A frase é de Shaw, mas Kennedy citou-a há 55 anos numa campanha, um ano antes dos Estados Unidos chegarem à Lua: "Há quem veja coisas que existem e pergunte porquê? Eu vejo coisas que nunca existiram e pergunto por que não?" Não há ninguém, neste país, capaz de perguntar por que não? É que até para um conservador como eu, os viciados no impossível fazem falta ao país.
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia