Opinião

O tempo dos monstros

O tempo dos monstros

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

O apoio norte-americano e a complacência dos principais países ditos “ocidentais” perante o genocídio do povo palestiniano perpetrado pelo governo sionista de Israel é uma ignomínia que o resto do mundo não esquecerá

A votação ocorrida na passada semana na Assembleia Geral das Nações Unidas em que 120 Estados contra 14 votaram uma Resolução apelando a “tréguas humanitárias imediatas, duradouras e sustentadas que conduzam à cessação das hostilidades na Faixa de Gaza”, depois de no Conselho de Segurança, os Estados Unidos da América terem vetado isolados uma proposta de resolução apresentada pelo Brasil que apelava para a libertação imediata e incondicional de todos os reféns civis; conclamava a uma pausa humanitária a fim de permitir o fornecimento rápido e desimpedido da ajuda humanitária; exigia o fornecimento contínuo de bens essenciais para a população civil, como artigos médicos, água e alimentos; e pedia a rescisão da ordem para que civis e funcionários das Nações Unidas evacuassem toda a área norte da Faixa de Gaza, deixa muito claro o isolamento mundial em que se encontram os países que apoiam ou pactuam com um genocídio que ficará para a posteridade como uma das páginas mais sinistras da História do Século XXI.

Não sabemos ainda como e quando esta guerra vai acabar. Ao inenarrável sofrimento que está a ser infligido ao povo da Faixa de Gaza e que não é exagero (antes fosse) comparar ao sofrimento imposto pelo regime nazi aos judeus do gueto de Varsóvia e que não sabemos até onde poderá ir, junta-se também o ataque dos colonos e do exército de Israel contra as populações da Cisjordânia ocupada que nada têm que ver com o Hamas e que são violentamente ameaçadas de expulsão num processo sistemático de limpeza étnica, e juntam-se ainda os ataque ao Sul do Líbano ou os bombardeamentos sobre a Síria. O que estamos a assistir não é a uma guerra de Israel contra o Hamas, mas um processo, levado a cabo por Israel com o apoio ativo dos Estados Unidos, de incendiar todo o Médio Oriente com consequências imprevisíveis, mas seguramente trágicas, não apenas para a região, mas para todo o mundo.

O discurso mais recente do chefe de Governo de Israel não esconde o desígnio de liquidar o povo da Palestina sob a invocação de citações bíblicas e não podia ser mais aterrador e esclarecedor quanto ao grau de barbárie que o regime sionista de extrema-direita que governa Israel está disposto a levar a cabo contra o povo palestiniano se o mundo civilizado não tiver forças para o travar.

O isolamento em que se encontram os governos dos poucos países que por ação ou omissão apoiam ou pactuam com o genocídio do povo palestiniano não deixa de ser sintomático das transformações que, lenta, mas seguramente, vão tendo lugar no plano mundial.

A ideia de que os Estados Unidos da América e os fiéis governos seus aliados podem fazer as guerras e apoiar os golpes de Estado que quiserem, onde e quando quiserem, e com as consequências que entenderem, ainda que à custa de centenas de milhares de mortos, e com uma escandalosa dualidade de critérios em matéria de direitos humanos, é algo que um mundo multipolar já não está disposto a aceitar.

As votações ocorridas nas Nações Unidas e as grandiosas manifestações contra a guerra e de solidariedade com o povo palestiniano ocorridas nos últimos dias, não apenas nos países de maioria muçulmana, mas também na maior parte dos países europeus (mesmo afrontando proibições inacreditáveis como em França, na Alemanha ou no Reino Unido), e mesmo nos Estados Unidos e em Israel envolvendo muitos cidadãos judeus não sionistas, são um sinal claro de que a Humanidade já não aceita a imposição da barbárie em nome de uma qualquer suposta superioridade moral ou civilizacional decretada unilateralmente pelos Estados Unidos e seus aliados com o objetivo de perpetuar o seu domínio hegemónico nos planos económico, político e militar.

A construção de um mundo multipolar, certamente eivado de contradições, mas desejavelmente menos injusto, é um processo em que os povos que não aceitam ser dominados terão de se confrontar com a reação violenta dos dominantes que não recuarão perante nada para manter os seus domínios e privilégios.

Em livro recentemente publicado, António Avelãs Nunes invoca um escrito de António Gramsci de há cem anos nos Cadernos do Cárcere: “o mundo velho está a morrer. O mundo novo tarda em aparecer. Neste claro-escuro nascem os monstros.” Este é o tempo dos monstros.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate