Opinião

Israel: o arco, a rabeca e a flecha

Estamos perante um Mal moral maior. (...) Poucas horas depois do festival de horror, da celebração do Mal, esperam que Israel toque "arco e rabeca", enquanto se sujeita a ser alvo de "arco e flecha". (...) Não é seguro que o Bem vença sem perdas, mas não é fatal que o Mal vença sem mais. E as palavras de Golda Meir voltam a ouvir-se nos corações de Israel: "Prefiro as vossas censuras às vossas condolências"

"Aquelas eram pessoas decentes, que tinham vivido muito tempo e já haviam conhecido e suportado o seu quinhão de sofrimento, pessoas judias nascidas num tempo em que a cultura ainda tinha, mesmo para judeus incultos, o seu manto religioso, e por isso a sua deferência para com alguém que pegava num arco e numa rabeca - em oposição a um arco e a uma flecha - era pura e simplesmente insuperável."

Philip Roth, em Património

A barbaridade – sem aspas, Público – levada a cabo sobre Israel por criaturas cujo termo adequado para as descrever me falta veio confirmar várias coisas importantes e uma sem importância nenhuma. Sobre as coisas importantes, informadas, impantes, outros cronistas já escreveram. Já a que não tem importância nenhuma é, porém, a única sobre a qual posso falar, porque evidencia a minha total falência como cronista: não tenho palavras. E o que é um cronista sem palavras?

Podia, claro, disfarçar, fugir do confronto com a hediondez, escrever sobre outra coisa qualquer. Porque a vida teima em continuar. Mas como escrever sobre outra coisa qualquer? Depois de ter visto o que não queria, deixei praticamente de conseguir ver outra coisa qualquer, porque aquelas imagens não saem da cabeça, não se desviam da memória.

Por falar em memória, é frequente a comparação destes anos 20 com os anos 20 do século passado: os cancelamentos, a gritaria tonitruante, o desprezo pela liberdade, o fascínio pelos autoritarismos, a relativização dos direitos humanos, o rufar dos tambores da guerra, os projectos pan-nacionalistas, a ideologia a levar a melhor sobre o real, as pessoas únicas e irrepetíveis usadas como instrumento de colectivizações de radicais de esquerda e de direita, todos os meios justificados na luta e a luta justificada na superioridade moral dos "nossos". Está tudo por cá. Mas há um problema com a memória: é que quando a memória nos sinaliza uma repetição do Mal, então, muito menos do que uma farsa e muito mais do que uma tragédia, estamos perante um Mal moral maior.

Neste caso, ante a grotesca e selvagem violação da Humanidade, não da Humanidade em abstrato, mas a violação da vida daquelas crianças, mulheres e homens em concreto, levada a cabo pelos assassinos do Hamas, já não estamos a repetir uma memória dos anos 20 mas dos anos 40, os anos do horror do Holocausto.

Do Holocausto.

Ainda mal refeitos – se isso for possível, por mais anos que se somem de vida a estes dias – das imagens do Mal, já nas ruas do Ocidente se ouviam cânticos anti-semitas ("from the river to the sea, Palestine will be free" é, basta olhar para o mapa, uma recusa do direito de existência do Estado de Israel) e sinagogas eram vandalizadas. Isto, enquanto nos media, intelectuais cheios de adversativas e jornalistas com mais agenda ideológica do que compromisso com a verdade, se acotovelaram para redirecionar o olhar crítico para o seu grande Satã: o Ocidente e, por tabela, Israel.

Já vimos isto antes. A História repete-se, mas repito: quando a História se repete ancorada no Mal não é só uma repetição, é uma cedência maior ao Mal, é um Mal moral maior.

Volto ao meu dilema, à minha falência enquanto cronista: não tenho palavras. Mas, aqui chegados, as palavras que me faltam agora a mim, não faltarão à maioria: agora que todos cometerão erros e excessos tais, que, à vez, serão usados por uns e outros como lenha lançada numa fogueira épica, que fará esquecer como é que a mesma começou e que, ironicamente, tenderá a extinguir a sarça ardente, palavras e actos não faltarão.

E por isso não vou, hoje, comentar, atacar, polemizar com ninguém em particular. Vocês sabem quem são.

Vocês são aqueles que, alegadamente defendendo o povo Palestiniano, se esquecem na maior parte das vezes, quando não sempre, de todos os palestinianos (e não só) seviciados, usados e mortos às mãos do Hamas (e, de certa forma, também, do Hezbollah), enquanto continuam a apontar o dedo a Israel. É assim há anos. É assim há décadas.

Vocês são aqueles que, intencionalmente aproveitam ou ingenuamente ignoram, que tal como dizia Arendt, vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança. Vocês são aqueles que, poucas horas depois do festival de horror, da celebração do Mal, esperam que Israel toque "arco e rabeca", enquanto se sujeita a ser alvo de "arco e flecha". Mas como, esclarecida e corajosamente, nos dizia esta semana Joe Biden: don't!

Não é seguro que o Bem vença sem perdas, mas não é fatal que o Mal vença sem mais. E as palavras de Golda Meir voltam a ouvir-se nos corações de Israel: "prefiro as vossas censuras às vossas condolências".

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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