Opinião

Colecionismo e museus: um revivalismo anacrónico no século XXI

A linha do tempo do colecionismo e da musealização e uma contemporaneidade estão marcadas por novos desafios. Fará sentido na atualidade dar condições para que um colecionador europeu, sozinho, sem especialistas e sem as comunidades de origem, apresente uma coleção não europeia e crie um novo museu? Não está já tudo nos museus europeus, o que sobra?

A tendência para acumular objetos do passado tem talvez a sua origem, no mundo ocidental, na procura e veneração das relíquias dos mártires cristãos; contudo, no Renascimento, rapidamente, no seio das famílias mais abastadas, este processo começa a abarcar mais elementos, estende-se a objetos da Antiguidade Clássica, passando depois para objetos pré-diluvianos1 espécies de animais (reais e inventados) objetos exóticos de outros continentes, armamento e pintura antiga e até de autores contemporâneos. O Schloss Ambras, em Innsbruck, é ainda um bom exemplo dessa diversidade que se expandiu para outro tipo de espaços hoje em dia conotados com outro tipo de museografia, como as próprias Galerias Uffizi, em Florença.

A partir de oitocentos, os museus tornam-se racionalistas, o iluminismo do século XVIII tornou os gabinetes de curiosidades (tendencialmente dispersos e caóticos) em laboratórios onde a ordem de Linnaeus predominava. O conhecimento e a ciência passam também do domínio privado para o público (a Accademia dei Fisiocritici, em Siena, é ainda hoje uma cápsula dessa transição entre o gabinete de curiosidades e o museu-laboratório). Em Portugal, tínhamos um ótimo exemplo em Coimbra (onde agora se tem inventado um conceito anacrónico de gabinete de curiosidades).

Toda a nação do século XIX que se prezava tinha de ter um museu. É neste momento que o colecionador se torna uma figura relevante para a sociedade, um sinal de estatuto, para alguns, e uma profissão, para outros. Os primeiros, geralmente pessoas com posses, compravam objetos, apresentavam-nos nas suas casas em saraus (um meio de sociabilização, uma demonstração de estatuto cultural e conhecimento do mundo), outros, nesta fase sobretudo professores e médicos, tentavam através dos seus conhecimentos, recoletar objetos para depois vender e estabelecer relações com os grandes senhores aristocráticos, para assim poderem ascender na sua carreira. Os grandes museus trabalhavam com ambos: é sabido que a coleção americana do antigo Museu Etnográfico de Berlim surge com a compra, em finais do século XIX, da famosa coleção de objetos pré-colombianos aos descendentes da terratenente cusquenha Maria Ana Centeno Romainville. Mas nem sempre os museus se constituíam a partir da aquisição de grandes coleções, a maior parte descontextualizada, mal estudada e inventariada; a maioria dos artefactos provinha precisamente de campanhas arqueológicas em grande escala organizadas, muitas vezes, à revelia dos países de origem das peças.

O choque da venda da coleção de Centeno à Alemanha e de outras coleções para outros países levou a que vários intelectuais peruanos se queixassem da exportação de objetos patrimoniais de enorme relevância para a afirmação histórica nacional e, desde cedo, ainda no século XIX, que o país apresenta leis que proíbem o Huaqueo2. No Egito e Próximo Oriente começamos a ter queixas similares a partir do período imediatamente a seguir às independências, nas primeiras décadas do século XX. A partir da Segunda Guerra Mundial praticamente terminam as campanhas patrocinadas pelos estados ocidentais para a recoleção de peças de outras culturas. As leis nacionais de cada país tornaram o património arqueológico mais protegido, sendo praticamente impossível a sua exportação para outro território.

O colecionismo, outrora um negócio rentável e lícito permitia, até meados do século XX, adquirir peças antropológicas mediante compras ou trocas, muitas delas completamente desiguais e em benefício dos ocidentais, de peças de arqueologia fora das convencionais campanhas de escavações organizadas pelas universidades e museus. A partir dos anos 50, progressivamente, tornou-se mal vista a compra a colecionadores e gradualmente passou inclusivamente a ser ilícito, com penalizações graves sobretudo a partir da Convenção da UNESCO de 1970 e do Convénio de Unidroit de 1995, que visavam impedir o comércio de bens de caráter arqueológico e antropológico, mas também a existência de um maior controlo sobre a circulação de obras de arte.

Os tempos mudaram, o vínculo dos museus com a academia e sobretudo com o poder político dos estados (democráticos) trouxe várias questões éticas, obrigando-os a ser mais seletivos relativamente às suas aquisições. Musealizar o passado de outras culturas tornou-se praticamente inviável a partir dos anos 90, de tal modo que alguns museus, como o Qay Branly ou Humboldt Forum, surgem precisamente de uma necessidade de reconfigurar as coleções não europeias presentes nesses países.

Na contemporaneidade, a política dos museus tende a privilegiar espaços que estabeleçam um diálogo entre culturas ou sobretudo que exibam um certo conceito de unidade cultural positiva (por exemplo: a arte europeia, o diálogo entre a Europa e determinado continente, a cultura global), em detrimento de uma ideia inicial de acumulação da diversidade e do saber ou de apropriação cultural ou afirmação imperialista. No entanto, para muitos, os museus continuam a ser fontes de negócio e, à vista de todos, continuam a constituir-se coleções de caráter arqueológico e antropológico numa dinâmica de colecionismo estético baseado no gosto individual, um revisionismo evidente que chocaria o próprio Linnaeus no século XVIII.

Fará sentido, na atualidade, com tanto conhecimento nas universidades nas áreas da Arqueologia e Antropologia, tendo também em conta as leis que já referimos anteriormente, dar condições para que um colecionador europeu, sozinho, sem especialistas e sem as comunidades de origem, apresente uma coleção não europeia e crie um novo museu? Não está já tudo nos museus europeus, o que sobra? O que pode trazer de novidade? Que questões éticas se levantam?

Notas

1 Assim se denominava a Pré-história, numa época em que o estudo do passado era ainda guiado pela antiguidade bíblica.

2 Saque e pilhagem de huacas, sepulturas ou templos incaicos; o termo generalizou-se por toda a América andina para designar o saque de sítios arqueológicos.

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