Opinião

O mundo como é – a visita à Ucrânia e o caminho por fazer

Nenhum continente conta com os recursos financeiros e diplomáticos de que a UE dispõe e este é o momento de ir a jogo, de colocar as nossas relações com o sul global em marcha

A visita recente à Ucrânia foi um misto de choque de realidade e sopro de esperança. De Kyiv a Irpin, constatei em primeira mão destruição e alento, perda e vitória, desespero e esperança. A dualidade de sentimentos marca a vida dos ucranianos que estão na frente de combate lutando pela ordem do mundo como ele é, contra aqueles que a trocariam pela selvajaria, pela arbitrariedade das fronteiras, pela suserania à força e pela barbárie. Mas há um outro lado desta história, o lado das mães e dos filhos que continuam a estudar, o lado dos muitos milhares que acolhemos e continuam em Portugal o seu projeto de vida. Para estes, a normalidade é um ato de resistência e no dia em que o esquecermos, não nos restará o alento para a vitória.

É talvez um sinal dos tempos e do imediatismo que nos prende aos dias que perante o apoio humanitário e militar da UE e dos EUA sejam exigidos à Ucrânia progressos céleres numa contraofensiva que se avizinhava difícil. Aliás, esse é o mais banal comentário político em relação à guerra em curso, com o “falhanço” da contraofensiva anunciado em qualquer canal genérico como uma verdade absoluta. Esta linha de raciocínio ignora dois factos, o primeiro dos quais é que a guerra sempre foi uma parábola de David e Golias e que se algo nos devia impressionar é a resistência dos ucranianos até então. O segundo é que os ucranianos não lutam somente pelo seu território, mas sobretudo pelo seu povo.

Lutar pelo seu povo é ter como certo que até na guerra há limites e que estes passam por não repetir os crimes do adversário. Perante uma fortificação e armadilhamento de uma longa faixa de território a leste de Kharkiv, a contraofensiva não poderia senão abrandar. Se assim não fosse, o custo em vidas de civis e militares ceifadas pelos campos de minas seria já incontável. Esse é um preço que a Rússia, lutando pela conquista de quilómetros, pode pagar, mas que a Ucrânia, defendendo-se não por palmos de terra mas por vidas, não pode tolerar.

A melhor ajuda que podemos dar aos ucranianos nesta fase não é o fatalismo cinzento por sede de vitória imediata, mas sim a esperança de um futuro europeu e da recuperação da sua terra-natal. O futuro, por este prisma cinzento não é o mundo como é, é o mundo que restará com fronteiras desenhadas à força.

Que fique claro, não se pretende ignorar os desenvolvimentos a leste, seja do estreitamento dos laços entre a Rússia e a China, seja da recente aproximação entre Vladimir Putin e Kim Jong Un. Claro que a abertura do fornecimento de equipamento balístico e munições da Coreia do Norte à Rússia nos deve preocupar, seja pelo alargamento do conflito a leste, seja pelo reforço da posição mútua de ambos os países, nem aqui se sugere que a guerra terminará com uma dose cavalar de wishful thinking.

Aqui chegados, sobra uma pergunta - e nós? No quadro europeu temos desenvolvido os esforços para a produção e compra conjunta de armamento que serve tanto para a reposição das reservas de guerra como para apoiar a Ucrânia. Perante o estreitamento de laços para lá do leste, este será talvez o momento de endurecer a resposta, usando todos os mecanismos dos Estados para estimular a produção do que ainda faz falta à Ucrânia e ao seu povo.

Para Portugal, há um segundo nível de responsabilidade. A conclusão de uma solução para a paz passará pelo alargamento da coligação que apoia a Ucrânia contra a invasão e nessa coligação estão ainda ausentes uma grande parte dos países do sul global. A forma chocada como alguns setores reagem perante a aparente impassividade destes países é talvez ilustrativa da lente privilegiada com que nos habituámos a olhá-los. Estes países, perante os quais esta guerra parece um fenómeno longínquo, habituaram-se a desconfiar do ocidente, sujeitos que estão a um Conselho de Segurança da ONU que não os representa, a uma UE que não os acompanhou no seu desenvolvimento económico, na transição climática e na produção de energia verde que por outro lado lhes exige. Nem é de estranhar a sua apreensão perante algumas fações poderosas nos EUA, que no passado puseram a força e a eficácia dos resultados acima da diplomacia e da democracia de outros estados. A boa notícia é que nas democracias vamos sempre a tempo de assumir o erro, emendar a mão e fazer melhor. Na verdade, tudo o que estes países precisam para o seu futuro são coisas que os europeus e os portugueses sabem fazer e devem, evidentemente, partilhar. Afinal de contas, não há nenhum ganho moral, geopolítico, diplomático ou ambiental na manutenção de infraestruturas degradadas, energia suja ou forças armadas impreparadas no sul do globo.

Nenhum continente conta com os recursos financeiros e diplomáticos de que a UE dispõe e este é o momento de ir a jogo, de colocar as nossas relações com o sul global em marcha, respondendo com respeito, com energia verde, com apoio humanitário, militar e com a promoção de segurança no desenvolvimento destes países. Na pena de Ben Rhodes, ex-conselheiro da Casa Branca, num livro biográfico chamado “O mundo como é” diz-se que “o progresso não é uma linha reta”. Assim o é, mas este é o momento de avançar e progredir, não pelo mundo como é, mas pelo mundo como queremos que seja.


Deputado do Partido Socialista

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