Há muitos anos que muitos políticos, sobretudo autarcas, levantam a questão da justiça territorial e da necessidade de compensar o interior do país pelos recursos naturais que disponibilizam ao resto do território sem receber em troca qualquer compensação por isso. Normalmente lembramo-nos da água como é exemplo do Castelo de Bode que fornece grande parte da população de Lisboa (impedindo que muitas indústrias desenvolvam atividade nas margens do rio Zêzere) mas também da energia produzida pelas barragens e mais recentemente pelos parques eólicos e fotovoltaicos.
Se no caso destas energias renováveis mais recentes os promotores pagam todos os seus impostos como qualquer empresa, os municípios recebem quase sempre compensações por essa atividade estar localizada no seu território e os proprietários as rendas ou o valor da venda dos terrenos. No caso das barragens, que hoje pertencem a privados, tal nunca aconteceu. Se no passado (quando até eram públicas), o impacto do número dos seus trabalhadores que viviam localmente eram um contributo importante para a economia local, hoje em dia, com mecanização a maior parte já nem tem funcionários em permanência e é quase tudo comandado à distância. Para os concelhos do interior do interior que as acolhem a compensação é zero.
Por isso é tão importante a luta que o Ministério das Finanças e o Governo, finalmente, estão a travar, muitas vezes contra a própria Autoridade Tributária e contra a vontade dos donos das barragens para cobrar o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) relativo a estas infraestruturas. Esta é também uma luta do interior do país por mais justiça territorial.
Como todos sabemos, o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) tributa a generalidade dos imóveis, com algumas exceções. Uma das exceções é não serem tributados os imóveis do Estado. Ora, se as barragens forem do Estado, não devem pagar IMI, mas se pertencerem a privados então têm pagar IMI.
Durante alguns anos, a Autoridade Tributária entendia que as barragens eram construções privadas em terrenos públicos e, por isso, deviam pagar IMI. Normalmente o fisco recorria a um parecer do Conselho Consultivo do Ministério Público que recordava que a EDP tinha resultado da privatização de um conjunto de empresas públicas que eram agora privadas e cujas barragens eram também agora privadas, continuando por isso atualmente como construções privadas em domínio público.
No entanto, em 2016, o processo sobre um tremendo volte face. Na sequência da contestação da EDP em tribunal arbitral da liquidação de IMI sobre as suas barragens a Autoridade Tributária, de forma surpreendente, veio dizer perante o tribunal que a EDP tinha razão. Ora, considerando que a própria AT vinha dar razão à EDP, então o tribunal arbitral decidiu a favor desta empresa privada o que terá deixado muitos portugueses surpreendidos.
O tema ficou meio adormecido até que, já no final de 2019 a EDP decide vender seis barragens por 2,2 mil milhões de euros à empresa francesa Engie naquilo a que o Expresso apelidou de “negócio histórico” (Negócio histórico: EDP vende seis barragens por 2,2 mil milhões de euros (expresso.pt)). Mas só já em 2021 se veio a saber que neste negócio tinha contornos pouco claros, primeiro através de uma declaração do Bloco de Esquerda e mais através da investigação do Ministério Público que aprofundou a suspeita de que a EDP poderia ter ludibriado o fisco, e neste caso o Estado, em cerca de 110 milhões de euros em imposto de selo relativo à venda das seis barragens. Mais tarde, o então líder do PSD, Rui Rio veio exigir ao Governo (Venda de barragens. Rio defende pagamento de impostos e acusa Estado de ser conivente (dn.pt) a cobrança dos impostos relativos à venda destas barragens e enviou mesmo uma denúncia ao Ministério Público.
A Câmara Municipal de Miranda do Douro, que tem duas barragens instaladas no seu concelho, tinha já recorrido à justiça para reclamar o pagamento do IMI relativo a estes dois equipamentos privados que não deixavam um tostão no seu território.
No entanto, quando ninguém esperava, o então recém indigitado Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Nuno Félix, que acompanhou Fernando Medina nas Finanças, profere um despacho que surpreendeu tudo e todos e que veio dar esperança e um primeiro sinal de justiça aos cerca de 50 concelhos que têm barragens nos seus territórios. Só a autarquia de Miranda do Douro prevê uma receita anual de IMI de 1,5 milhões de euros, valor de importância extraordinária no seu reduzido orçamento anual. Imaginemos agora o significado desta cobrança para os restantes 50 concelhos abrangidos.
Neste despacho de fevereiro de 2023, Nuno Félix ordena à Autoridade Tributária que cumpra o entendimento que está no parecer da PGR e que considera que as barragens privadas devem pagar o Imposto Municipal sobre Imóveis como qualquer outro agente económico privado.
Recentemente o Ministério das Finanças fez um segundo despacho no mesmo sentido que fez soar as campainhas no Parlamento. Os Deputados do PSD questionaram oportunamente o Governo sobre a razão ou necessidade desta segunda iniciativa. Será que a AT estaria novamente a desobedecer ao Governo? Nas suas explicações o Secretário de Estado explicou que apesar do PSD referir apenas estas 6 barragens, há mais de 50 barragens por todo o país e que, na sequência do despacho, a AT está a trabalhar na reavaliação e tributação de todas elas. O que está em causa é a notificação a todos os proprietários ou titulares de concessões de barragens terem de inscrever voluntariamente estas infraestruturas nas finanças, sob pena de a AT o fazer oficiosamente.
É bastante provável que os próximos tempos sejam pródigos em litigância nos tribunais, tanto por parte das empresas contra a Autoridade Tributária por consideraram o valor de IMI demasiado elevado como das próprias autarquias contra o fisco por consideraram o valor atribuído pelo IMI de cada barragem demasiado baixo. Isto na esperança que a AT não ganhe vida própria e venha mais uma vez surpreender os portugueses, e o Governo, colocando entraves a esta devida e justa cobrança.
Tendo em conta que a maior parte destas infraestruturas estão instaladas em concelhos do interior do país e que têm uma importância tão grande para o fornecimento de energia a todos os portugueses, é de elementar justiça social e territorial que estes concelhos venham rapidamente a receber o valor justo pela instalação destes imóveis privados no seu território. Afinal, as EDP e afins não são mais do que qualquer outra empresa privada.
Esta é uma iniciativa justa do Governo e de particular coragem por parte do seu Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.