Nagorno-Karabakh: como a História levou à crise atual
A culpa é da geopolítica, mas quem paga é a população. Qual é o problema em torno da região do Nagorno-Karabakh?
Investigadora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica
A culpa é da geopolítica, mas quem paga é a população. Qual é o problema em torno da região do Nagorno-Karabakh?
Como acontece com quase todos os conflitos, explicar o que se passa na região do Nagorno-Karabakh poderia fazer-nos recuar vários séculos na História, até às raízes ancestrais do problema. Para compreender o essencial, porém, só precisamos de começar pelo final da Primeira Guerra Mundial, que ditou o colapso da Era dos Impérios – como a batizou o historiador Eric Hobsbawm.
Chamamos Transcaucásia à região transfronteiriça dos Impérios Russo, Persa e Otomano, e que compreende, hoje, os territórios da Arménia, do Azerbaijão e da Geórgia. As transformações geopolíticas ocorridas no período que se seguiu à dissolução do Império Russo criaram condições para a posterior disputa soviética pela Transcaucásia, cronologicamente precedida de uma Guerra Civil Russa e da consequente vitória Bolchevique nessa guerra. O caminho até à formação de uma República Federativa Socialista Soviética Transcaucasiana foi conturbado, em grande medida por conta de uma grande multiplicidade étnica e de uma falta de harmonia mais ou menos crónica nesta região: primeiro, a declaração da independência da Transcaucásia logo após o fim do Czarismo; cinco semanas depois, a divisão desta região em três repúblicas distintas, a Arménia, o Azerbaijão e a Geórgia.
O espírito de desunião e as tensões étnicas, sobretudo entre a Arménia e o Azerbaijão, facilitaram a penetração e ocupação soviéticas nestes Estados, então tornados repúblicas soviéticas. A lógica de dividir para reinar, em particular durante a liderança de Estaline (ele próprio georgiano), foi altamente fomentada pelas cisões internas existentes nestas repúblicas e que os soviéticos estudaram astutamente. O estabelecimento das fronteiras destas novas repúblicas soviéticas foi feito justamente de acordo com o estudo destas cisões: repare-se no exemplo concreto da região do Nagorno-Karabakh, maioritariamente (95%) povoada por arménios, propositadamente integrada por Estaline na República Federativa Socialista Soviética do Azerbaijão e posteriormente tornada uma região (oblast) autónoma, ainda que sob a jurisdição moscovita.
Embora a tensão entre arménios e azeris nunca tivesse desaparecido durante a era soviética, a realidade é que o controlo de um poder central sobre estes territórios e populações serviu como que um tampão para um conjunto de animosidades que acabariam por culminar num conflito efetivo após o colapso da União Soviética, em 1991. O fim desta unidade geopolítica, a URSS, significou a independência das suas outrora 15 repúblicas federativas, entre as quais a Arménia e o Azerbaijão. A maioria arménia na região do Nagorno-Karabakh vislumbrou a hipótese da sua independência relativamente ao Azerbaijão, o que fora, obviamente, apoiado por Yerevan e rejeitado por Baku. Estima-se que, entre 1991 e 1994, cerca de 30000 pessoas tenham morrido numa guerra que acabou por não conhecer um vencedor, mas apenas um cessar-fogo. Durante este período, que delimita aquela que ficou conhecida como a Primeira Guerra Karabakh, os arménios conseguiram controlar a região do Nagorno-Karabakh, avançando mesmo para fora dela (isto é, para fora das fronteiras do antigo oblast), e criaram uma ligação importante entre o Nagorno-Karabakh e a Arménia, na zona de Lachin (ver Road/Lachin corridor, ou corredor de Lachin, no mapa).
Entre 1994 e 2020, longe de ser totalmente pacífico, o impasse conheceu alguns confrontos pontuais. O Azerbaijão fez uma nova investida em 2020, tendo sucesso na recuperação do território “extra” para onde os arménios haviam conseguido avançar em 1991-1994. Estima-se que cerca de 7000 pessoas, entre arménios e azeris, tenham morrido nesta ofensiva mais recente. Novos combates eclodiram no ano passado e pelo menos uma centena de mortes foi confirmada. Na origem destes últimos, estará um bloqueio do Azerbaijão ao corredor de Lachin, que é o único ponto de contacto direto entre arménios na Arménia e arménios no Nagorno-Karabakh, assim como a única via de abastecimento dos arménios no Nagorno-Karabakh.
Hoje, às portas do Mundo confortável Ocidental, centenas de pessoas na região do Nagorno-Karabakh fazem fila por uma refeição (quase todos os dias a mesma coisa e quase todos os dias limitada a pão). Não têm água, eletricidade, gás, medicamentos, gasóleo/gasolina. Os supermercados já não têm nada para vender. Esta é uma situação que se arrasta há já 9 meses e que atinge agora o estatuto preocupante de uma crise humanitária. E para agravar o nível de ansiedade acerca do futuro deste enclave e, sobretudo, dos seres humanos que lá vivem, a Rússia, envolvida num conflito direto com a Ucrânia e indireto com todo o Ocidente, é clara na demonstração do seu apoio ao autor do bloqueio que está a levar os arménios do Nagorno-Karabakh à fome: há menos de 2 meses, o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, afirmou que os arménios do Nagorno-Karabakh tinham que aceitar a sua integração no território do Azerbaijão.
A Europa mostra-se alerta para o problema, designadamente ao tomar a iniciativa de tentar abastecer o território em causa, ainda que sem sucesso. Nos noticiários, começam a ser usados termos como “massacre” e “genocídio”, o que choca e assusta particularmente, numa altura em que o século XXI parece não parar de nos querer mostrar que a evolução não está no avanço do tempo no calendário, mas na mentalidade e no comportamento do Homem.
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