Opinião

Acabou a greve dos médicos internos. E agora?

A greve dos médicos internos foi uma expressão reivindicativa que deu forma à falha das negociações com os sindicatos, à degradação galopante do internato e carreira médica e ao limite moral a que as condições do Serviço Nacional de Saúde começam a colocar em causa a segurança dos médicos e dos doentes. O que mais precisa de falhar para que os governantes passem das palavras aos atos?

Acabou a greve dos médicos internos. E agora?

Gonçalo Pinto Soares

Médico interno de cirurgia geral

Terminou a primeira greve nacional de sempre convocada exclusivamente para médicos internos. Com o mediatismo inédito que conseguimos alcançar, durante rápidos dois dias, foi possível dar eco aos problemas - antigos mas agravados - que continuam a corroer o internato e a carreira médica em Portugal. Se os internos acreditam que a greve terá as consequências que merece ter? A resposta qualquer um a dará, em qualquer serviço de urgência, enfermaria ou gabinete de consulta.

Já da parte de quem é verdadeiramente responsável pela gestão da Saúde do nosso país, a resposta tem sido o silêncio. Do ministro da Saúde e do diretor-executivo do SNS, nem uma palavra. Do ministro das Finanças, muito menos. Do primeiro-ministro, o “presidente do sindicato de todos os portugueses”, talvez quando surgir outra emergência de saúde pública que o obrigue a priorizar o interesse nacional.

É por isso tempo de todos - sindicatos e médicos -, percebermos que jamais conseguiremos defender a carreira, o internato e o SNS se continuarmos a permitir que nos tentem isolar dos pacientes e do resto da sociedade. É a perpetuação da desinformação que suporta falsas ideias como a de que há falta de médicos em Portugal ou de que somos uma classe privilegiada, corporativista e mercantilista. Dificilmente haverá protesto que coloque o Governo a aderir às nossas reivindicações enquanto esta desinformação, preconceitos e estigma não acabarem.

Terminou ontem a greve, cujos pressupostos subscrevo por completo, mas a partir de hoje deve começar uma reivindicação - permanente - ao boicote a que a classe médica e os médicos internos são sujeitos há décadas. Precisamos de reconciliar os pacientes e a sociedade com a classe médica, e para isso temos de ser embaixadores da nossa classe e da nossa importância na prestação dos cuidados de saúde.

Temos de defender a imprescindibilidade de uma formação médica de qualidade para assegurar o futuro da Saúde em Portugal, e isso não é de somenos relevância. Pois essa qualidade estará sempre posta em causa enquanto o internato médico não garantir o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal do interno - permitindo um estilo de vida que salvaguarde a sua saúde física, mental e emocional -; enquanto não assegurar uma formação contínua sem custos incomportáveis - com oportunidades de treino clínico e teórico, quer no seu local de trabalho, quer em simpósios, cursos e congressos; enquanto não proteger um ambiente de trabalho seguro - livre de assédio, discriminação ou qualquer contexto que prejudique o bem-estar do interno; e enquanto condicionar a nossa atividade assistencial - exigindo-nos cobrir a falta de médicos especialistas do SNS com horas extraordinárias desumanas -, prejudicando a qualidade da nossa formação, pondo o futuro - e o presente - do SNS em cheque.

Hoje já não é dia de greve, mas o compromisso dos médicos internos ficou claro: chegou o momento de passar das palavras aos atos, pressionando o poder político a fazer o que ainda não foi feito, que tarda em fazer e que mais tarde ou mais cedo vai ter mesmo de ser feito, sob pena das comorbilidades do Serviço Nacional de Saúde se tornarem insanáveis

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