Opinião

Na formação médica, nada de novo

Na formação médica, nada de novo

José Durão

Médico interno de Saúde Pública

A braços com uma greve de internos que nunca desejaram necessária, mas que se tornou inevitável, jovens médicos exigem saber: até quando?

“Arranja-se uma cadeira e senta-se um interno.”, ouvi uma colega dizer da colocação de médicos internos nos serviços de saúde. Um médico interno, ou simplesmente interno, completou os seis anos do curso de medicina e um ano de formação geral em meio clínico, podendo exercer medicina autónoma, mas sem especialidade. A vasta maioria prossegue para um programa formativo adicional de quatro a seis anos, almejando um dia ser especialista numa das 48 áreas atuais do saber médico.

A citação é uma hipérbole, sendo certo, porém, que a escalada contínua no número de vagas para acesso a uma especialidade impõe a dúvida: no auge da insatisfação da classe médica, como é possível que o sistema aumente anualmente a oferta formativa? A resposta é simples, traduzida acima pelas palavras irónicas: é possível ter uma massa incremental de internos, se se ignorar critérios de qualidade formativa.

É infrutífero tentar destrinçar a formação médica pós-graduada das questões laborais e de gestão de um sistema viciado e dependente de 600 ou mais horas de trabalho extraordinário, incapaz de lidar com a identidade dual do interno, simultaneamente médico-trabalhador e médico-formando. Os internos são parte do ecossistema da saúde, inseridos numa hierarquia, sujeitos às condições do meio, forçados à adaptação para cumprirem com as exigências formativas: projetos de investigação, avaliações contínuas, apresentações em congressos, construção de currículos, exames anuais. Se não lhes dão tempo para estudo autónomo, usam o tempo livre. Se lhes pedem para completar escalas de urgência, fazem centenas de horas a mais do razoável e legal. Se há menos especialistas para os formar, ensinam-se uns aos outros.

É preciso reforçar: falamos de jovens médicos que querem efetivamente aprender e que querem efetivamente exercer a sua profissão, na plenitude da sua paixão pela medicina. Jovens médicos que sentem a sua formação estagnada no tempo. Jovens médicos conscientes de que prestam os cuidados possíveis aos seus doentes, não os melhores.

Jovens médicos diariamente relembrados do quão elevado está o custo de vida, do quão deteriorada está a sua saúde mental, do quão adiada está a sua vida pessoal. Seria preciso retroceder décadas para desenterrar as raízes do problema. Como foi que ser médico se tornou fonte quase exclusiva de sacrifício, de frustração e de exaustão emocional? Como é que no último concurso de acesso à especialidade um em cada cinco médicos candidatos tenha optado por não prosseguir para uma especialização, deixando 161 vagas por preencher?

Anos de status quo, de maus hábitos e de pressões cumulativas fizeram da minha geração a mais bem preparada de sempre e também a mais desesperada. Não basta uma cadeira para se ser interno. Queremos formação de excelência para cuidados de saúde de excelência. Queremos segurança para nós e para os nossos doentes. Queremos ser médicos no nosso país, vivendo o mundo fora da enfermaria ou do consultório, concretizando uma vocação que não suspenda os nossos direitos e não resuma a nossa identidade.

Perguntando que planos, que estratégias, que notícias nos podem dar do futuro da saúde em Portugal, a resposta é breve e repetitiva: A oeste nada de novo. Perante o fenómeno inédito de médicos que questionam o valor de ser médico, a inércia para a intervenção de quem gere a formação médica é assombrosa. Um fenómeno que será cíclico, cada ano retornando mais grave do que no ano anterior, até que não restem médicos em formação ou até que o sistema colapse pelo êxodo de um terço da sua força de trabalho. O que vier primeiro.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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