Primeiro caiu o Carmo e a Trindade. O Tribunal Constitucional, no que continua a ser erradamente interpretada por muitos como uma incompreensível deriva libertária, assinou, em abril de 2022, a certidão de óbito do (aparente) alfa e ómega da investigação criminal em Portugal, a dita lei dos metadados (a Lei 32/2008, de 17 de julho). Tal foi o clamor geral que se seguiu pela preservação da segurança pública, que tanto Presidente da República como primeiro-ministro uniram vozes sugerindo uma inútil alteração da Constituição da República num domínio legislativo totalmente ocupado pelo direito da União Europeia. Em desespero, a Procuradora-Geral da República chegou ao ponto de pedir (absurdamente) a nulidade do acórdão junto do próprio Tribunal Constitucional. O assunto era muito urgente, reforçou a Ministra da Justiça, que, em junho de 2022, anunciou uma “mudança de paradigma” materializada numa proposta de lei que iria pôr fim ao “impasse jurídico e operacional”.
Um ano depois, o impasse e a urgência mantêm-se. A mudança de paradigma proposta pela Ministra da Justiça – um Frankenstein jurídico que envolvia transformar a natureza de bases de dados de faturação criadas para proteger os direitos dos consumidores – compreensivelmente não convenceu sequer o Partido Socialista. Em alternativa, este resolveu juntar forças com o Partido Social Democrata numa tentativa vã de repristinação da defunta lei dos metadados apresentada há duas semanas no parlamento.
O mínimo olímpico que se podia esperar dos deputados do bloco central na sessão legislativa que agora finda é que lessem a abundante jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o complexo tema da conservação preventiva de metadados que esteve na origem e na base da decisão do Tribunal Constitucional. Se o tivessem feito, rapidamente perceberiam que a proposta que apresentam é um absoluto non sequitur à luz do direito constitucional da União Europeia. Entre outros aspetos, a proposta ignora: i) que a conservação preventiva e indiscriminada de dados de localização e da generalidade de dados de tráfego – por alguma razão ausente da proposta do Governo – é inadmissível; ii) que a mesma conservação de endereços de protocolo IP por um período de um ano é excessiva e não pode ser utilizada para a globalidade do alargado catálogo de crimes graves previsto na lei dos metadados; e iii) que o consentimento tácito do titular dos dados não pode, em nenhuma circunstância, servir de fundamento ao tratamento massivo de dados pessoais, incluindo necessariamente de dados sensíveis.
A proposta do bloco central é, a todos os títulos, lamentável porque significa um procrastinar inadmissível da aprovação de um ato legislativo que permita uma conservação preventiva de metadados compatível com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. O Tribunal de Justiça, não obstante considerar que constitui uma ingerência muito séria nos direitos à privacidade e à proteção de dados, admitiu, por exemplo, a adoção de legislação nacional que preveja, em algumas circunstâncias, a conservação indiscriminada de endereços de IP, considerando que tal se justifica porque esses metadados constituem frequentemente o único meio de investigação de crimes muito graves praticados na internet. É o caso paradigmático da aquisição, difusão, transmissão ou colocação à disposição em linha de pornografia infantil. Esta é, ao que parece, praticada hoje impunemente no nosso país. Até quando?
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