A marca do PCP na descriminalização do consumo de drogas
Em 2023 tal como em 2000, as leis que tratam o consumo de drogas como um problema de saúde que exige acompanhamento e não como um crime que conduza à prisão, têm a marca do PCP
Membro do Comité Central do PCP e professor universitário
Em 2023 tal como em 2000, as leis que tratam o consumo de drogas como um problema de saúde que exige acompanhamento e não como um crime que conduza à prisão, têm a marca do PCP
Em 2 de Março de 2000, o PCP apresentou duas iniciativas legislativas sobre o regime legal das drogas. O Projeto de Lei n.º 120/VIII, de despenalização do consumo de drogas e o Projeto de Lei n.º 119/VIII que propôs um regime de mera ordenação social aplicável ao consumo de drogas. Segundo estes projetos, o mero consumo de drogas deixaria de ser crime, passando a ser-lhe aplicável um regime de dissuasão que excluía a aplicação de sanções penais.
Estes projetos de despenalização do consumo, mantendo o crime de tráfico, distinguiam-se de iniciativas então apresentadas pelo BE (Projeto de lei n.º 113/VIII) e por Deputados da JSD (projeto de lei n.º 110/VIII) que pretendiam separar as chamadas “drogas leves” das chamadas “drogas duras” e que viriam a ser rejeitados.
Em 1 de Junho desse ano 2000, o Governo PS de maioria relativa apresentou a Proposta de Lei n.º 31/VIII que definia o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas bem como a proteção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica, regime que passava basicamente pela descriminalização do consumo de drogas que, tal como no projeto do PCP, passava a ser considerado como um ilícito de mera ordenação social.
Da aprovação da proposta do Governo e dos projetos do PCP resultou um texto de substituição que foi aprovado em Comissão e em Plenário e só teve os votos contra dos partidos de direita existentes à data, o PSD e o CDS.
Esta Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, que descriminalizou o consumo de drogas e determinou a criação das Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência, não só não teve os efeitos nefastos que os seus detratores prognosticaram como teve resultados muito positivos na redução do consumo de drogas e de crimes que lhe estavam associados, como tem sido ao longo dos seus mais de vinte anos de vigência objeto de estudo e de valorização em muitos países do mundo.
Sucede, contudo que, em 2008, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça veio criar obstáculos à sua plena aplicação, por motivos que procurarei sintetizar:
A Lei n.º 30/2000 determinou no seu artigo 2.º que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo de drogas ilegais constitui contraordenação, sendo que a aquisição e a detenção dessas substâncias para consumo próprio não poderá exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Mais adiante (artigo 28.º) a mesma lei revogou expressamente o artigo 40.º da anterior “lei da droga” (decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro) que punia com pena de prisão até 3 meses ou multa até 30 dias quem consumisse, cultivasse, adquirisse, ou detivesse drogas para seu consumo, exceto quanto ao cultivo.
Assim, o consumo, bem como a detenção ou aquisição para consumo, foram descriminalizadas, mantendo-se apenas a criminalização do cultivo. E a posse da quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias seria considerada como um indício de tráfico, a ser confirmado, ou infirmado, pela investigação que teria lugar.
Não foi esse o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que, num acórdão de 2008 considerou que não obstante o teor da norma revogatória da Lei n.º 30/2000, a norma incriminadora do Decreto-Lei n.º 15/93 se mantinha em vigor não apenas quanto ao cultivo mas também quanto à aquisição ou detenção para mero consumo, pelo que, segundo essa jurisprudência, quem detiver drogas em quantidade superior à do consumo médio individual durante 10 dias, mesmo que não se prove que é traficante, é punido por consumo, sendo assim contrariada a norma que, inequivocamente, descriminalizou o consumo.
Em consequência, o Relatório Anual de 2018 do Serviço de Intervenção nos Comportamento Aditivos e nas Dependências (SICAD) refere que 43% das pessoas condenadas nesse ano ao abrigo da “lei da droga” o foram por simples consumo, e que 99 % dessas condenações tiveram expressamente como base o referido acórdão do STJ.
Para corrigir esta situação e repor inequivocamente na lei aquela que foi a vontade do legislador, o PS apresentou no final de junho deste ano o projeto de lei n.º 848/XV esclarecendo a descriminalização da detenção de droga para consumo independentemente da quantidade.
Nos termos deste projeto, na sua versão inicial, a aquisição e a detenção de drogas para consumo próprio que exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui mero indício de que o propósito pode não ser o de consumo.
Na especialidade, o PCP completou a proposta, acrescentando que, não havendo indício da prática de crime de tráfico, haja o encaminhamento para a comissão para a dissuasão da toxicodependência competente.
A redação final proposta pelo PS, que teve a adesão da IL, do PAN e do Livre, acolheu a sugestão do PCP, que retirou a sua proposta nessa parte em benefício do texto acordado, ficando assente na lei que “desde que fique demonstrado que a aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para Comissão de Dissuasão da Toxicodependência”.
A aprovação final ocorreu na passada quarta-feira, 19 de julho, e só teve os votos contra do CH e as abstenções do PSD e de nove Deputados do PS. Aguarda-se a promulgação e a entrada em vigor para que se reponha em pleno a vigência da descriminalização do consumo de drogas tal como foi determinado pelo legislador há 23 anos.
Então como hoje, com a marca do PCP.
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