Faz agora um ano, publiquei aqui um artigo acerca do desesperado apego ao poder de Boris Johnson, pese embora o seu registo extremamente negativo na chefia do Governo e os sucessivos casos que o atingiam. Cerca de um mês depois, o antigo Primeiro-Ministro cedeu, finalmente, à pressão do seu próprio partido, e demitiu-se.
Para essa demissão, muito contribuiu a erosão da sua imagem devida aquilo que ficou conhecido como partygate e as suspeitas de que, a esse respeito, tinha mentido ao Parlamento.
Como na altura escrevi, na mais antiga democracia do mundo a questão de saber se o Primeiro-Ministro mentiu aos Deputados é tratada como um assunto muito sério. E, em consequência, a comissão parlamentar da Câmara dos Comuns denominada Committee of Privileges – que corresponde, em termos gerais, à Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados da Assembleia da República – foi encarregue de instaurar um inquérito para apurar a sua conduta.
O relatório final da comissão só será tornado público amanhã, dia 14. Mas o seu teor foi comunicado a Boris Johnson na passada semana e levou, de imediato, à sua renúncia como Deputado. Ao que parece, a comissão deu como provado que o visado tinha mesmo mentido ao Parlamento e iria propor a sua suspensão. Algo que, de acordo com as regras ali aplicáveis, daria lugar, no círculo pelo qual foi eleito, a um pedido de revogação do mandato (o chamado “recall”) e, muito provavelmente, a um sufrágio intercalar, que, com elevada probabilidade, Johnson perderia. No fundo, tratou-se apenas uma jogada de antecipação por parte deste.
A técnica da vitimização política é bem conhecida. E, nos nossos dias, porventura ninguém a pratica com tanta eficácia (e tanto despudor, já agora) como Donald Trump. Algo que ficou bem patente no recurso sistemático à tese de “witch-hunt” quando foi acusado, por um tribunal de Nova Iorque, de falsificação dos registos das suas empresas, quando foi condenado, também em Nova Iorque, por abuso sexual e difamação e quando, ontem mesmo, foi acusado, em Miami, a propósito da questão dos documentos secretos retirados da Casa Branca e encontrados na sua casa de Mar-a-Lago.
Boris Johnson, há que reconhecê-lo, sempre foi uma personagem politicamente “fora da caixa”. Mas, nos últimos tempos, tem vindo a resvalar, mais e mais, para o populismo, na linha do antigo Presidente norte-americano. E a declaração de renúncia que fez não deixa dúvidas a esse respeito. Basta ler a seguinte passagem: “Não estou sozinho no pensamento de que está em curso uma caça às bruxas, como vingança pelo Brexit e que tem como objectivo último reverter o resultado do referendo de 2016”.
A tese de Boris Johnson é simples. Nada fez de mal, mas (quase) todos estão contra ele – os trabalhistas, os liberal-democratas, os nacionalistas escoceses, os bremainers, neles incluindo membros do seu próprio partido. E, muito em especial, o próprio Committee of Privileges e a sua Presidente, a trabalhista Harriett Harman, a quem atribui um papel determinante nesta conspiração.
Creio que, daquilo que se passou no Reino Unido, se devem retirar algumas ilacções importantes, todas elas relacionadas com o valor central da verdade em política.
A primeira, é que a mentira não pode ficar impune. E que o grau de responsabilidade aumenta em função, não só da gravidade da mesma, mas também da relevância do cargo ocupado por quem a ela recorre. E daí, como refere Hannah White, directora do Institute for Government (um “think-tank” sedeado em Londres), o excepcional valor, para a democracia, de um mecanismo que permite a um pequeno grupo de parlamentares fazer cumprir o princípio de que os políticos têm de dizer a verdade.
A segunda, é que a assunção da responsabilidade deve ser voluntária e, mais do que isso, partir da iniciativa do próprio. É que sair pelo próprio pé significa respeitar o mantado que foi conferido e, portanto, engrandece o próprio, enquanto pretender ficar a todo o custo representa uma violação grave da confiança que nele foi depositada e, consequentemente, apouca-o.
A terceira, é que a obrigação primeira dos eleitos é para com aqueles que representam e que, quando a verdade está em causa, isso tem de prevalecer sobre tudo o mais.
O Committee of Privileges é composto por sete Deputados: quatro conservadores, dois trabalhistas e um nacionalista escocês. E isso quer dizer que, sem votos do seu próprio partido, Boris Johnson não teria sido censurado. Ou seja: que alguns membros do Partido Conservador (ou até todos, uma vez que, não se conhecendo ainda o relatório, não sabemos se houve votos contra e de quem) compreenderam perfeitamente a quem devem fidelidade primeira.
Aprender com os bons exemplos dos outros é sinal de humildade e de inteligência. E, face à progressiva degradação a que temos assistido na vida política portuguesa, com vantagem aprenderíamos com aquilo que no Reino Unido se passou.
Não é isso, porém, a que temos assistido na generalidade das situações (embora, felizmente, não em todas). Porque faltar à verdade é um detalhe sem consequências. Porque assumir a responsabilidade política, seja ela subjectiva ou objectiva, é a excepção, não a regra. Porque o que importa é defender “os nossos” e não fazer vingar valores e princípios mínimos de decência democrática.
Julgarão alguns, ao ler estas palavras, que aquilo que escrevo é influência directa de quanto se tem vindo a passar nos últimos tempos e que tem tido como palco privilegiado a Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP. Antes fosse. Mas não é. Ou melhor, não é só. Porque tais acontecimentos são, apenas, uma manifestação dos sintomas. Os sintomas de uma doença muito mais profunda, que vai minando a nossa vida política e gerando uma desconfiança crescente por parte dos cidadãos. E que a maioria dos principais protagonistas não quer, não sabe ou não consegue combater.