Opinião

Boris (ou da mentira em politica)

Boris (ou da mentira em politica)

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

Aprender com os bons exemplos dos outros é sinal de humildade e de inteligência. E, face à progressiva degradação a que temos assistido na vida política portuguesa, com vantagem aprenderíamos com aquilo que no Reino Unido se passou

Faz agora um ano, publiquei aqui um artigo acerca do desesperado apego ao poder de Boris Johnson, pese embora o seu registo extremamente negativo na chefia do Governo e os sucessivos casos que o atingiam. Cerca de um mês depois, o antigo Primeiro-Ministro cedeu, finalmente, à pressão do seu próprio partido, e demitiu-se.

Para essa demissão, muito contribuiu a erosão da sua imagem devida aquilo que ficou conhecido como partygate e as suspeitas de que, a esse respeito, tinha mentido ao Parlamento.

Como na altura escrevi, na mais antiga democracia do mundo a questão de saber se o Primeiro-Ministro mentiu aos Deputados é tratada como um assunto muito sério. E, em consequência, a comissão parlamentar da Câmara dos Comuns denominada Committee of Privileges – que corresponde, em termos gerais, à Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados da Assembleia da República – foi encarregue de instaurar um inquérito para apurar a sua conduta.

O relatório final da comissão só será tornado público amanhã, dia 14. Mas o seu teor foi comunicado a Boris Johnson na passada semana e levou, de imediato, à sua renúncia como Deputado. Ao que parece, a comissão deu como provado que o visado tinha mesmo mentido ao Parlamento e iria propor a sua suspensão. Algo que, de acordo com as regras ali aplicáveis, daria lugar, no círculo pelo qual foi eleito, a um pedido de revogação do mandato (o chamado “recall”) e, muito provavelmente, a um sufrágio intercalar, que, com elevada probabilidade, Johnson perderia. No fundo, tratou-se apenas uma jogada de antecipação por parte deste.

A técnica da vitimização política é bem conhecida. E, nos nossos dias, porventura ninguém a pratica com tanta eficácia (e tanto despudor, já agora) como Donald Trump. Algo que ficou bem patente no recurso sistemático à tese de “witch-hunt” quando foi acusado, por um tribunal de Nova Iorque, de falsificação dos registos das suas empresas, quando foi condenado, também em Nova Iorque, por abuso sexual e difamação e quando, ontem mesmo, foi acusado, em Miami, a propósito da questão dos documentos secretos retirados da Casa Branca e encontrados na sua casa de Mar-a-Lago.

Boris Johnson, há que reconhecê-lo, sempre foi uma personagem politicamente “fora da caixa”. Mas, nos últimos tempos, tem vindo a resvalar, mais e mais, para o populismo, na linha do antigo Presidente norte-americano. E a declaração de renúncia que fez não deixa dúvidas a esse respeito. Basta ler a seguinte passagem: “Não estou sozinho no pensamento de que está em curso uma caça às bruxas, como vingança pelo Brexit e que tem como objectivo último reverter o resultado do referendo de 2016”.

A tese de Boris Johnson é simples. Nada fez de mal, mas (quase) todos estão contra ele – os trabalhistas, os liberal-democratas, os nacionalistas escoceses, os bremainers, neles incluindo membros do seu próprio partido. E, muito em especial, o próprio Committee of Privileges e a sua Presidente, a trabalhista Harriett Harman, a quem atribui um papel determinante nesta conspiração.

Creio que, daquilo que se passou no Reino Unido, se devem retirar algumas ilacções importantes, todas elas relacionadas com o valor central da verdade em política.

A primeira, é que a mentira não pode ficar impune. E que o grau de responsabilidade aumenta em função, não só da gravidade da mesma, mas também da relevância do cargo ocupado por quem a ela recorre. E daí, como refere Hannah White, directora do Institute for Government (um “think-tank” sedeado em Londres), o excepcional valor, para a democracia, de um mecanismo que permite a um pequeno grupo de parlamentares fazer cumprir o princípio de que os políticos têm de dizer a verdade.

A segunda, é que a assunção da responsabilidade deve ser voluntária e, mais do que isso, partir da iniciativa do próprio. É que sair pelo próprio pé significa respeitar o mantado que foi conferido e, portanto, engrandece o próprio, enquanto pretender ficar a todo o custo representa uma violação grave da confiança que nele foi depositada e, consequentemente, apouca-o.

A terceira, é que a obrigação primeira dos eleitos é para com aqueles que representam e que, quando a verdade está em causa, isso tem de prevalecer sobre tudo o mais.

O Committee of Privileges é composto por sete Deputados: quatro conservadores, dois trabalhistas e um nacionalista escocês. E isso quer dizer que, sem votos do seu próprio partido, Boris Johnson não teria sido censurado. Ou seja: que alguns membros do Partido Conservador (ou até todos, uma vez que, não se conhecendo ainda o relatório, não sabemos se houve votos contra e de quem) compreenderam perfeitamente a quem devem fidelidade primeira.

Aprender com os bons exemplos dos outros é sinal de humildade e de inteligência. E, face à progressiva degradação a que temos assistido na vida política portuguesa, com vantagem aprenderíamos com aquilo que no Reino Unido se passou.

Não é isso, porém, a que temos assistido na generalidade das situações (embora, felizmente, não em todas). Porque faltar à verdade é um detalhe sem consequências. Porque assumir a responsabilidade política, seja ela subjectiva ou objectiva, é a excepção, não a regra. Porque o que importa é defender “os nossos” e não fazer vingar valores e princípios mínimos de decência democrática.

Julgarão alguns, ao ler estas palavras, que aquilo que escrevo é influência directa de quanto se tem vindo a passar nos últimos tempos e que tem tido como palco privilegiado a Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP. Antes fosse. Mas não é. Ou melhor, não é só. Porque tais acontecimentos são, apenas, uma manifestação dos sintomas. Os sintomas de uma doença muito mais profunda, que vai minando a nossa vida política e gerando uma desconfiança crescente por parte dos cidadãos. E que a maioria dos principais protagonistas não quer, não sabe ou não consegue combater.

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