Opinião

A Europa e a Sublime Porta

Acaba de se assinalar mais um dia da Europa. Ultrapassada a pandemia, com uma guerra instalada no seu coração, é altura de o Velho Continente enfrentar o risco da Sublime Porta no seu flanco oriental

O recente sismo de grande escala ocorrido na Turquia, com toda a tragédia humana que lhe está infelizmente associada, bem como a reação internacional de solidariedade que se lhe seguiu, não pode fazer esquecer aos europeus quer o significado político interno quer o respetivo alcance geoestratégico das eleições presidenciais que aqui tiveram lugar no passado domingo.

Com efeito, o resultado destas eleições apresenta uma sociedade profundamente dividida entre uma Turquia secular, liberal, pró-europeia e uma Turquia teocrática, autoritária e nostálgica da velha ordem otomana em conflito com os valores europeus. Obrigados a uma segunda volta, a ter lugar a 28 do corrente, a escolha entre os dois candidatos, representando estas duas alternativas, não será indiferente ao futuro da própria Europa.

Lembre-se que não só na Europa vivem atualmente milhões de turcos como a Turquia representa, com o atual presidente, a ameaça próxima da grande substituição, a partir a do Oriente, e, ainda pior, a fronteira com o mundo árabe e persa que, aliados à Rússia, se apresentam como os arqui-inimigos dos valores do Ocidente.

É, precisamente, tendo como pano de fundo essa clivagem atual e o seu significado para o futuro da Europa (lembrando que a Turquia é candidata à adesão à União Europeia desde 1999) que procurarei avivar algumas memórias sobre os fundamentos mais profundos da atual situação turca, nomeadamente acerca do confronto histórico entre o Ocidente e o Oriente, entre o cristianismo e o islão, entre a liberdade ocidental e a submissão oriental.

Vejamos, primeiro, a circunstância próxima. Para o atual presidente Erdorgan, grande vencedor do golpe de dois mil e dezasseis, a Turquia deverá continuar a reforçar o seu pendor nacionalista e conservador, nomeadamente consolidando o presidencialismo e acabando com o Estado secular instaurado em 1923 por Kemal Ataturk. Recorde-se que a Constituição otomana de 1876 ainda consagrava Sua Majestade, o Sultão, como Supremo Califa e Protetor da Religião Muçulmana. E é sabido que Erdorgan gosta habitualmente de ser comparado a Mehmet II, um dos grandes sultões da época de ouro do império otomano.

Ou seja, todo o trajeto político de Erdorgan aponta no sentido do regresso da história, isto é, do regresso do grande império otomano desagregado depois da primeira guerra mundial. Como? Voltando a criar um Estado religioso, muçulmano, sem separação de poderes, onde não exista liberdade de expressão ou garantias de direitos humanos. Um Estado absoluto, onde Erdorgan se transfigure em novo Sultão da Sublime Porta.

Vejamos agora as raízes. O conflito entre o Ocidente e o Oriente, de que a Al Qaeda ou, agora, o Estado Islâmico e as suas diversas versões menores contra os cristãos e a civilização ocidental é apenas a manifestação mais recente, é tão antigo que pertence à mitologia. Começou com a guerra que é, provavelmente, a mais célebre da história, travada entre os Aqueus, gregos do nordeste do Peloponeso, e um povo quase mítico da Ásia Menor, os troianos, por causa da desonra infligida ao rei espartano Menelau, cuja mulher Helena fora raptada por um simpático troiano chamado Páris (lembre-se que Roma invoca a sua origem mítica na Ásia com a vinda de Eneias, um troiano, herói da epopeia de Virgílio).

Este momento, provavelmente apenas mítico, em que os troianos saíram derrotados, foi objeto de notável relato de Homero, na Ilíada, celebrando o nascimento de Hélade e, posteriormente, da Europa e o seu triunfo sobre a Ásia. A este confronto sucederam-se as célebres batalhas de Termópilas, Maratona e Salamina que puseram fim às guerras persas e em que, nas palavras do grande historiador Edward Gibbon, a Europa garantiu para sempre a sua liberdade e a sua identidade cultural (como séculos mais tarde Lepanto e Viena). Seguiu-se a conquista da Ásia por Alexandre da Macedónia e pelo Império Romano.

Em Tróia, todavia, fora acesa a chama que arderia ao longo dos séculos, pois aos troianos sucederam-se os Persas, aos Persas os Fenícios, aos Fenícios os Partos, aos Partos os Sassânidas, aos Sassânidas os Árabes e aos Árabes os Turcos Otomanos. Foram, porém, estes últimos até hoje a maior potência do Oriente, cujo império viria a assumir o manto do califado, como símbolo maior do despotismo oriental, e a ameaçar a Europa ocidental e a cristandade.

O sultão Mehmed II, designado comandante dos fiéis e imperador do mundo, ao conquistar Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente (1453), tinha plena consciência desta longa história. E só quase meio milénio mais tarde, em 1918, as tropas britânicas e italianas voltariam a entrar na cidade que o próprio Mehmed II transformara em Istambul. Os aliados permaneceram na cidade apenas cinco anos, mas muitos na época saudaram a ocupação como a segunda queda de Constantinopla, o dia em que o Ocidente pusera fim àquela que Heródoto chamara a inimizade perpétua.

Infelizmente, a grande clivagem ou inimizade entre a Europa cristã e o Oriente muçulmano não terminou aí. É verdade que, muitas vezes, no acentuar dessa clivagem também esteve a arrogância dos líderes europeus ou a própria intolerância da igreja de Roma, como ocorreu com a saga das cruzadas de má memória, lançadas pelo papa Urbano II, no ano de 1095, e cujo objetivo central terminou, ingloriamente, com a reconquista de Jerusalém pelo grande herói muçulmano, o curdo Saladino.

Acontece que, esse cisma, essa divergência ou eterna inimizade, volta hoje a agudizar-se em torno de novos protagonistas, tendo claramente a religião como pano de fundo, mas também evidentes interesses geopolíticos renascidos.

E quando a Europa, na sua pretensa e atual a-religiosidade, pensava poder integrar os turcos otomanos na sua gerigonça institucional, a bem do mercado único e dos interesses alemães, nomeadamente, contendo os refugiados e imigrantes do Médio-Oriente, eis que o novo pretendente a Sultão da Sublime Porta vê tremer a hipótese de o conseguir na segunda volta destas eleições

De facto, pode ser este o fim do já longo reinado de Erdogan, agora que a crise económica e financeira volta a afetar a Turquia, a que se soma a má gestão da recente catástrofe. Mas tudo está ainda em aberto e a conjuntura internacional não ajuda a grandes certezas.

Em suma, como defendeu Samuel Huntington, estamos perante mais uma evidência de que o século XXI será o do choque das civilizações pelo domínio mundial e agora não deixaremos, aqui, de presenciar mais uma das ironias subtis da pequena história dos grandes homens: Erdorgan conquistou o seu poder na sequência do grande terramoto de 1999 e arrisca-se perdê-lo em consequência do terramoto de 2023.

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