Os países pós-soviéticos são soberanos, sim
O “pós-sovietismo” tem mais de 30 anos, mas continua a gerar dúvidas – pelo menos a alguns. Afinal, que países saíram da antiga União Soviética e que estatuto têm?
Doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da UCP
O “pós-sovietismo” tem mais de 30 anos, mas continua a gerar dúvidas – pelo menos a alguns. Afinal, que países saíram da antiga União Soviética e que estatuto têm?
As declarações do Embaixador chinês em Paris, Lu Shaye, ao canal televisivo francês TF1 no passado dia 21 de abril geraram indignação e motivaram alguma preocupação entre vários diplomatas e representantes ocidentais acerca da posição chinesa relativamente aos países pós-soviéticos, aos quais Lu Shaye se referiu num conjunto de observações algo deslocadas da realidade do século XXI. O Embaixador terá negado a soberania destes países, dizendo que “não há nenhum acordo internacional que materialize o seu estatuto de nações soberanas”. E como uma infelicidade nunca vem só, acrescentou, sobre o caso concreto da Crimeia e a sua pertença, ou não, à Ucrânia: “Depende da forma como se olha para este problema. Há uma história. A Crimeia foi da Rússia no início. Foi Khrushchev que deu a Crimeia à Ucrânia na época da União Soviética”.
Apesar de ter concluído apelando a um cessar-fogo entre russos e ucranianos, as afirmações do Embaixador levaram o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês a exigir um esclarecimento à China, designadamente questionando-a sobre se a sua posição oficial se reflete de alguma maneira no discurso de Lu Shaye - “Esperamos que não seja o caso”, remata o comunicado francês. Evidentemente, um conjunto de outros países – designadamente os Bálticos, a quem as afirmações polémicas do Embaixador dizem respeito – vieram demonstrar a sua estupefação, requerendo explicações do lado chinês e a sua retratação face ao que consideram ser um discurso inaceitável:
“Este homem tem problemas com a geografia” – Embaixador ucraniano em Paris, Vadim Omelchenko;
“Declarações completamente inaceitáveis” – Ministro dos Negócios Estrangeiros letão, Edgars Rinkevics;
“É triste que um representante da República Popular da China tenha essas opiniões” – chefe de diplomacia estónio, Margus Tsahkna;
“A UE só pode supor que estas declarações não representam a política oficial da China” – chefe da política externa da União Europeia, Joseph Borrell.
Na sequência da exaltação provocada pela entrevista a Lu Shaye, a China desmarcou-se oficialmente da visão pré-1991 reiterada pelo seu representante em Paris e garantiu respeitar a soberania de todas as ex-repúblicas soviéticas. A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Mao Ning, recordou ainda o papel da China no estabelecimento de relações diplomáticas com alguns destes países logo após a implosão da União Soviética e sublinhou a posição de neutralidade do seu país no respeitante ao conflito que opõe a Rússia e a Ucrânia (se é que ainda é possível ser-se neutro nesta guerra).
O período pós-soviético – ou o “pós-sovietismo” – é o que chamamos à História que começou a escrever-se a partir do dia 26 de dezembro de 1991 (até à atualidade). A data não é ocasional: é o dia seguinte ao último discurso de Mikhail Gorbatchov enquanto líder soviético, no contexto do qual é declarada extinta a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Para aqueles que conseguirão recordar-se das imagens televisivas, este foi o dia de Natal em que a bandeira encarnada no Kremlin deu lugar à bandeira tricolor da recém-nascida Federação Russa. A fragmentação desta unidade geopolítica constituída por 15 repúblicas federativas viabilizou a emergência de 15 novos países tornados independentes e, sublinhe-se, soberanos: Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia, Estónia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Letónia, Lituânia, Moldávia, Rússia, Tajiquistão, Turquemenistão, Ucrânia e Uzbequistão. A não confundir com as ex-repúblicas soviéticas, os países da vulgarmente conhecida como Europa de Leste (Bulgária, Checoslováquia, Hungria, Polónia, República Democrática Alemã e Roménia) não faziam parte do território da URSS, operando antes como seus “Estados-satélite”. O que isto significa é que, apesar de formalmente independentes, na prática, estes últimos países viveram durante o período soviético sob o jugo político, ideológico, cultural e moral de Moscovo.
A História, como a geografia, confirmam a ligação efetiva que existiu durante décadas entre um comando central de poder – Moscovo – e as 15 repúblicas da antiga União Soviética, onde se inclui a própria Rússia. Mas esta História, como esta geografia, tiveram um fim, em 1991, com o colapso do comunismo soviético, que significou simultaneamente o remapeamento de uma mancha territorial tão vasta quanto a própria URSS e o nascimento de um conjunto de novas nações independentes e finalmente livres para erguer as suas bandeiras, cantar os seus hinos e ensinar nas escolas as suas próprias línguas. Como não questionamos a soberania de antigas colónias africanas, sul-americanas, ou asiáticas, colocando em causa uma História que o século XX resolveu, a soberania destes países pós-soviéticos também não deve gerar dúvidas ou ser alvo de juízos de opinião. Os países pós-soviéticos são soberanos, sim.
O que temos observado nas últimas duas décadas, sobretudo, é uma tentativa por parte da Rússia de reavivar, nem que seja pela via da força, esta ligação com alguns dos antigos territórios soviéticos – um espaço considerado por Moscovo como vital e descrito nos conceitos de política externa da Rússia como um tipo de estrangeiro distinto, o “estrangeiro próximo”. Até ao deflagrar da guerra na Ucrânia, este “estrangeiro próximo” podia funcionar como uma espécie de cordão sanitário a separar a Rússia do mundo e das instituições ocidentais; mas o resultado da “operação militar especial” produziu efeitos com que o Kremlin, provavelmente, não estava a contar. A recente adesão da Finlândia à Aliança Atlântica, que conta agora com 31 Estados-membros, alterou o panorama pré-2022/23 e significa, pela primeira vez na História, que a NATO e a Rússia estão “paredes meias” uma com a outra (a fronteira da Finlândia com a Rússia perfaz um total de 1340 quilómetros).
A disposição revisionista do atual Presidente russo permite prever que a Rússia vai continuar a testar a sua capacidade de interferir e manipular o espaço pós-soviético. O sucesso desta política dependerá em grande medida dos interlocutores com quem a liderança russa se cruzar – pense-se nas diferenças entre Alexander Lukashenko (Presidente da Bielorrússia) e Volodimir Zelensky (Presidente da Ucrânia), por exemplo. Por outro lado, cabe ao Ocidente, suas instituições, media e opiniões públicas conhecer a História, entendendo o que mudou desde 1991, para que declarações como aquelas que ouvimos da parte do Embaixador chinês em Paris não possam ser consideradas inofensivas ou normalizadas.
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